O gotejar de uma torneira mal fechada em uma pia de inox é um dos ruídos mais irritantes ao ouvido humano. E foi exatamente este barulho uniforme e angustiante que despertou Raíssa.
A garota estava deitada sob uma superfície dura e nada confortável. A medida que seu olhos desanuviavam, sentia um latejar na parte esquerda da testa, logo acima do supercílio direito. Num gesto automático, a menina levava a mão até a origem da dor quando descobriu que seria impossível executar esta tarefa, pois tinha os braços amarrados junto ao corpo.
Mais surpresa do que amedrontada, avaliou sua situação e tentou compreender como chegara até ali. Estava deitada de costas no que parecia uma maca, mas sem colchão algum. Tinha os pulsos amarrados fortemente com tiras de couro ao lado do abdômen, presas na própria maca com correntes pequena e finas, porém resistentes. Suas pernas também estavam imobilizadas em uma estrutura semelhante, com amarras na altura da panturrilha e logo acima do joelhos.
Quando saíra de casa junto de seus pais, Raíssa vestia uma legging azul marinho, e uma blusa de manga comprida que ela mesma estilizara. Porém, no local em que se encontrava, vestia apenas calcinha e sutiã. A noção de estar seminua pareceu acender-lhe a chama do medo. Um crepitar imaginário percorria a mente da garota, rumo a uma explosão de desespero.
O gotejar na pia continuava, a torneira parecia implorar para que uma boa alma fechasse o registro corretamente. Raíssa já estava em plena consciência, e forçava inutilmente os pulsos para soltar-se de sua arapuca de aço. Uma vaga lembrança de estar conversando com sua amiga Mikaela via Messenger foi a última coisa que sua mente registrara até o momento em que acordou.
A luz que entrava pelas pequenas janelas vítreas do local era fraca e parecia mergulhar na penumbra rapidamente. Com a respiração descompassada, Raíssa girava o pescoço com dificuldade, na esperança de encontrar algo ou alguém no aposento que pudesse ajudá-la. Seus olhos se encontraram com os de um rapaz, deitado em uma maca igual à que ela estava (agora ela via que, na verdade, era uma mesa cirúrgica).
A cor levemente azulada da pele do rapaz e os olhos opacos, leitosos e fixos em um ponto qualquer não deixaram qualquer dúvida à garota de que ele estava morto.
Foi aí que Raíssa gritou pela primeira vez.
***
O grito da menina saiu agudo e estridente, ecoando por todo o quarto fechado. Se aquilo fosse um filme de horror, certamente ela teria uma atuação elogiada. Mas aquilo não era faz-de-conta, era real. Raíssa pedia por socorro e se debatia sobre a mesa, na vã esperança de soltar-se.
- ALGUÉM??! SOCORRO!!!! EU ESTOU PRESA AQUI!! SOCORRO!!! SOC...
O grito cessou de imediato quando uma lâmpada fluorescente acendeu-se, banhando o corpo de Raíssa com uma forte luz branca. A garota estreitara os olhos, a fim de evitar a claridade que atingia sua vista. Era como olhar diretamente para o Sol do meio-dia.
Uma porta situada atrás da garota rangeu ao ser aberta. Como se não mais se importasse com a claridade, Raíssa arregalou os olhos e tentou virar a cabeça na direção do rangido, mas o ângulo em que ela estava a impedia de ver a figura que passava pelo umbral.
A pessoa se encaminhava lentamente na direção de Raíssa. Ainda que ela não conseguisse ver com precisão, notou que era um homem, alto, que usava calça jeans, boné e uma espécie de avental branco.
- Q-quem é v-v-você??! - perguntou Raíssa, percebendo agora que segurava a respiração.
O homem ignorou a pergunta, e se pôs a examinar os pulsos da menina, verificando se ainda estavam bem presos. Raíssa notou que ele tinha uma barba começando a embranquecer, e usava óculos de lentes muito grossas, e não parecia importar-se em mostrar o rosto. Na verdade, o indivíduo tinha uma expressão serena e tranquila.
As mãos do homem desceram até as coxas da cativa. Quando a ponta dos dedos finos tocaram a pele, Raíssa pôs-se novamente a gritar, pedindo (implorando!) para que nada fizesse com ela. Não podia mais conter as lágrimas diante do desespero iminente. Novamente ignorando a menina, o homem apenas vistoriou as amarras acima dos joelhos e depois as que prendiam as panturrilhas de Raíssa. Tudo em ordem.
- Eu não ser tarado. - disse o homem, com sotaque britânico.
- C-como é?! - falou Raíssa, em meio as lágrimas que turvavam ainda mais sua visão.
- Me não ser rapist... não querer sexo.
Raíssa o olhava confusa, sem entender. Não era uma aluna excelente em inglês, e o português de seu interlocutor também não era muito bom, mas, pelo pouco que entendou, não seria violada por ele.
- Eu... eu não tenho dinheiro, moço...
- Oh! Sim. No problema, menina.
Um barulho de metal arrastando no chão chamou a atenção de Raíssa. Vinha do local por onde Avental Branco entrara, fora de seu campo de visão. Sua atenção foi novamente atraída para o homem à sua frente, que tirou do bolso da calça jeans o celular da garota.
- Isto ser seus mamães? - perguntou o homem, mostrando a tela do Nokia Lumia, que exibia uma foto tirada naquele mesmo dia, no Shekinah.
- S-sim... por favor, moço, me deixe ir!
Os dedos do homem passearam outra vez pela tela do celular e, com um sorrisso de tio bondoso, virou o aparelho para mostrar a última foto que Raíssa veria, tirada naquela semana, na escola. Uma selfie dela com Felipe, seu colega, nomeada como "Crush e eu".
- E isto? Seu namorado?
Raíssa tomou fôlego para responder, e, por apenas uma fração de segundos, viu o olhar do homem a sua frente desviar na direção da porta. Então, só ouviu um barulho semelhante a um traque de São João quando uma marreta de abatedouro desceu-lhe sobre a cabeça. Depois escuridão.
A pancada foi suficientemente forte para rachar seu crânio. Pedaços de osso penetraram no cérebro da garota, matando-a instantâneamente. Pés e mãos agitavam-se em agonia, sem saber que sua dona já estava morta. A bexiga e os intestinos afrouxaram-se, tomando a sala com um odor característico.
A garota somente ficou imóvel quando a marreta desceu novamente. Desta vez sobre o centro do rosto. A nova pancada afundou-lhe o nariz e a cavidades oculares, como se na realidade ela tivesse uma cabeça de boneca feita de plástico vagabundo, tornando a face, antes bonita, em uma massa pastosa de sangue, pele, ossos, miolos e cabelos.
O homem do avental assistiu a tudo com a calma de quem já vira eventos semelhantes muitas vezes.
Ajeitando os óculos e colocando luvas e máscara cirúrgicas, falou em bom inglês, dirigindo-se a outra pessoa na sala:- Vamos, Silvia. Não podemos perder tempo.
Silvia, uma mulher imensa, obesa mórbida e dotada de extrema força, tratou de buscar os utensílios que o homem iria precisar.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Punição
Tajemnica / ThrillerExiste penalização ideal para a barbárie? Um psicopata pode ser perdoado, mesmo após uma carnificina? Vivemos em um mundo onde há, de fato, justiça? "Punição", ajudará a esclarecer estas indagações, em uma história que coloca dramas familiares comun...