Um final (in)feliz? - Conto Cachinhos Dourados

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Sinto que estes contos retratam somente os protagonistas como indefesos e incapazes de machucar alguém, está na hora do roteiro mudar. Claro que imaginar personagens tão puros se rendendo a este tipo de maldade não é nada fácil, mas você já ouviu o ditado "situações extremas requerem medidas extremas" e ditados famosos sempre têm a sua ponta de verdade.

Recebi uma piscadinha da nossa escritora, então acho que estou certo!

De volta ao conto, muitos de vocês não estão entendendo o rumo desta introdução e cabe a mim explicá-lo: a situação que nossa protagonista está vivendo é quase fatal e quando se está em tamanho desespero nem a pureza de seus cabelos dourados é capaz de assolar os instintos selvagens dentro de si mesma...

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Apesar de todas as circunstâncias apontarem o contrário, ela estava viva. Ou pelos menos, o mais viva que se pode estar naquele cenário. Os galhos, muitas vezes traiçoeiros com visitantes, facilitavam sua caminhada e ofereciam apoio com pena dos pés da menina que andava há horas. Pessoas perdidas e assustadas não eram novidade para a floresta.

Há algum tempo, os raios de sol do amanhecer brilharam no céu e ofereceram uma vista maravilhosa para Cachinhos Dourados que quase não os notou por seu estômago roncar mais alto a cada segundo. Ela lembrou a última vez que comera uma refeição corretamente e seu coração apertou ao perceber que fora junto do Seu Medeias, o padeiro mais generoso da vila inteira que sempre cuidava dela e a enchia de pães quando a via pelas ruas.

Quando pequena, fora abandonada pela mulher que a criou e, desde que se recorda, é moradora das vielas da vila. Nem nome tinha quando se encontrou pela primeira vez com Seu Medeias e sua esposa, que logo ao vê-la exclamou o quão lindo seus cachos dourados eram. O apelido pegou e a menina sem nome passou a ser a dona do cabelo de ouro.

Além disso, ela era também muita conhecida pelo seu jeito curioso de querer conhecer tudo o que passava pela sua visão, o que a arranjava muitas brigas com comerciantes mesquinhos. Fora por isso também que se encontrava perdida, a curiosidade de saber o que havia naquelas árvores e agora o cansaço não a deixava nem saber quanto tempo perdera nessa "aventura".

Depois de mais alguns minutos de caminhada silenciosa, Cachinhos Dourados avistou um arbusto com o que pareciam ser frutas e se moveu até ele rapidamente erguendo a mão para pegá-las, sem pensar que poderiam venenosas. No momento que ia enfiar dez das frutinhas na boca de uma só vez, ela enxergou um casebre a metros de distância, rodeado pelo jardim mais bem cuidado que a garota já vira.

É claro que isso chamou sua atenção.

Deixado cair o seu precário e duvidoso café da manhã, Cachinhos Dourados, estes sujos e nada brilhantes, caminhou com cuidado até a frente da porta. Bateu uma vez delicadamente e após esperar por alguns segundos a resposta que não veio, bateu mais uma vez com mais força e mais pressa. Nada.

O motivo do silêncio, em contrapartida, foi encontrado quando ao bisbilhotar dentro do lugar a menina percebeu que estava vazio.

Seu estômago roncou novamente e ela sabia que se ficasse sem comer não iria ter forças para voltar para a vila. Escutar o seu cérebro era impossível, já que a fome dominava seu corpo inteiro, e foi com essa desculpa que a jovem abriu a janela, sem muitas dificuldades, para adentrar justamente na cozinha do casebre.

Bem decorada, a sala de jantar ficava ao lado com uma mesa redonda e algumas cadeiras de tamanhos variados como a principal decoração.

Com rapidez e uma pitada de desespero, ela correu para a bancada e abriu todos os potes e gavetas que encontrou pela frente até pegar um potinho lacrado com um cheiro delicioso.

– Mingau! – ela exclamou o mais alto que sua voz, rouca pela falta de uso, permitiu.

E talvez se ela não tivesse se distraído com a comida ou se tivesse adentrado na casa alguns poucos minutos antes, Cachinhos Dourados teria notado a geladeira escancarada e o jeito como os objetos estavam jogados pelo cômodo, o que era um claro sinal que quem ou o que morasse ali não demoraria muito para voltar. Talvez também ela não teria se assustado tanto quando a porta da casa se escancarou e deu passagem para três ursos grandes e nada amigáveis.

O rugido do urso foi acompanhado pelo grito de horror da menina dos cachos de ouros.

Sem largar do mingau, ela pulou da bancada e correu para a janela, quase experimentando o alívio da fuga se o urso maior não tivesse puxado seu pé com sua enorme pata. Ele a jogou em direção à mesa, fazendo-a espatifar a cadeira do urso bebê.

– O que está fazendo na minha casa? – o urso berrou, e sim, animais falantes não eram de surpreender os moradores das regiões. São difíceis de se ver, porém fáceis de se ouvir falar sobre. A maioria era coerente e aberta à conversa como humanos, mas pela forma que a raiva estampava em seus olhos, este não era a maioria.

Cachinhos Dourados gostaria de ter falado algo, implorar por perdão ou contar sobre sua fome. Ao contrário disso, ela alternou o olhar desesperado do animal gigante em cima dela para os dois mais ao fundo igualmente assustados. A mãe e o filhote não sabiam se ficavam com medo da estranha ou do modo descontrolado que o pai agia.

"Por favor, não me machuque!", ela pensou e um gemido de choro saiu de sua boca, as lágrimas ainda estavam entaladas. Arrastando-se pelo chão e por entre a madeira espalhada pelo chão, a garota tentava alcançar novamente a janela. O urso avançou com velocidade para cima de seu corpo. Cara a cara com sua presa, pronto para mordê-la até os pedaços.

E foi encarando a morte e a certeza de que os dentes podres daquele animal seriam sua última visão antes de morrer, Cachinhos Dourados deixou seu corpo agir primeiro que seu cérebro: com mais agilidade do que pensava que tinha, ela esticou a mão e agarrou um pedaço pontiagudo da cadeira destruída, utilizando-o ao mesmo tempo que a boca do oponente estava a milímetros de encostar em sua bochecha. Fincou-o com força o mais próximo do coração do bicho.

A vida de pouco em pouco deixou o corpo.

Acompanhada de um suspiro lamuriado, a menina se levantou do melhor jeito que pôde e ousou encarar os dois ursos restantes que a olhavam com expressões horrorizadas.

– Eu não tive escolha – sua voz saiu trêmula e nada convincente, pedir desculpas não teria sentido após ter feito o que fez.

Ela fugiu pela janela, depois de pegar o pote de mingau que permanecia ironicamente intacto, e correu sem olhar para trás pelo máximo de tempo que suas pernas conseguiram. Permitiu-se, então, chorar e deixar as lágrimas escorrerem livremente. O rosto molhado pela culpa e pela vergonha.

Havia matado alguém. As mãos que nunca foram usadas para fazer sequer uma maldade acabaram com a vida de alguém, de um marido e de um pai. De um animal falante, aqueles que apesarem de não serem humanos sempre foram muito bem vistos pelos olhos dos habitantes por não fazerem mal para suas vilas. A imagem da cara do filhote de urso piorou seu choro, a garota de rua sabia a dor que era viver sem pai e agora deu o mesmo destino para outro bebê.

Cachinhos Dourados era uma ninguém e conseguira estragar a vida de uma família tudo por causa de egoísmo, um pote de comida. Provavelmente não descobriria o caminho para a vila e nunca mais comeria com Seu Medeias, ficaria nestes matos e definharia até morrer de remorso, mas ela não se importava. Ela merecia ter esse fim.

As pernas sem sustento algum, desabaram de cansaço levando-a junto, o cheiro de grama e terra invadiu seu nariz. Os dedos fracos e sangrentos tremeram ao abrir o mingau.

E apesar de suas mãos não terem o sujado, o líquido que caiu pela sua garganta tinha gosto de sangue fresco.

Um final (in)feliz?Onde histórias criam vida. Descubra agora