†Dois copos†
A primeira coisa que se percebe são as luzes. Tudo brilha, tudo pisca. O inferno para as pessoas com astigmatismo. Se, em algum momento de sua vida, você já viveu a noite de uma cidade grande então deve entender mais ou menos o que estou falando. Os faróis dos carros são pequenas estrelas cadentes nas estradas, os prédios são espelhos luminosos que substituem as estrelas. As pessoas são sombras caminhando lavadas por uma chuva de luz. Cada corpo é um universo, cada ser uma entidade, cada cabeça uma ilha, um abismo e um vulcão. Isolada, em queda e erupção. E na noite todos somos seres decadentes que não querem encarar a normalidade de seu próprio ser no dia seguinte. Eu era um corpo semi-vivo em um bar qualquer – o mundo não havia assassinado minha essência por completo naquele dia – era um sujeito sóbrio, sombrio e cansado. Mais um sujeito perdido na confusão do vai e vem dos bares. Ela era uma pessoa um tanto incomum, veja bem, não uma qualquer como se espera da vida ordinária, tinha algo a mais, além do mero ser que se postava em certa proximidade da minha mesa. Um par de pernas estonteante que caminhava para lá e para cá, vez ou outra um par de olhos que encarava os meus, mais olhos que pernas a me observar, mais pernas do que olhos observados.
A noite começou com gim, doses caprichadas servidas por um barman amigável e ansioso para que eu estivesse bêbado demais para saber diferenciar o falsificado do original. Gim e tônica, água gelada vez ou outra para evitar uma embriaguez precoce, o objetivo do jogo é ficar embriagado, mas não há graça em vencer rápido demais, no fim, se alcançasse meu objetivo em uma hora perderia toda a diversão das horas subsequentes. Assim me embriagava devagar, mas não devagar demais. Ela estava no canto direito do bar, conversando com uma amiga, vestia-se para casualidade, sentia-se à vontade naquele lugar, não era vulgar, mas sensual. Algo em seu batom diferente ou em seus cabelos feitos pra todas as modas. Vez ou outra olhava para mim e sussurrava algo com a outra garota que, por fim, olhou para onde eu estava.
Há uma série de coisas por trás de um olhar, e quando se trata da alma feminina essa variedade de possibilidades se estende indeterminadamente pelo manto das possibilidades subjetivas, porém em minha visão ébria aquele olhar significava interesse, o qual eu gentilmente ignorei. Primeiro por não saber se conseguia me levantar com destreza o suficiente para manter minha dignidade intacta, beber sentado é uma coisa terrível por isso, não dá pra saber até onde você foi no jogo e dado o tempo que eu estava bebendo era impossível determinar se ainda estava funcional o suficiente para andar normalmente até as duas garotas e oferecê-las uma boa bebida. Segundo porque fingir desinteresse é a forma mais rápida de ganhar ou perder o interesse de alguém, e se as moças fossem tão carnívoras quanto pareciam a primeira vista definitivamente aquela jovem caçadora viria até mim.
E ela veio.
Suas pernas eram como obras de algum escultor especialmente habilidoso, limpas, lindas, morenas e volumosas. Quadris desenhados pelos mestres mais habilidosos da pintura e da textura. Olhos de ventania e cabelos curtos negros. Um piercing no lábio inferior e dois na orelha esquerda. Ela passou por mim e deu um sorriso. A saia curta chamou a atenção dos meus olhos tanto quanto o que elas buscavam, ou não, ocultar. Esse cortejo silencioso durou alguns minutos, em um canto do bar três jovens riam, divertindo-se com algo que parecia lhes ser interessante e que para mim era completamente irrelevante. Um músico tocava Pink Floyd com seu violão e meu eu ébrio tentava ignorar o fato dele desconhecer por completo a letra de "Wish you were here". O barman e três garçonetes trabalhavam servindo as mesas ocupadas e recolhendo a louça suja das vazias. Éramos poucos naquele lugar, ninguém esperava pelo que iria acontecer.
Tomei mais um gole de Gim e convidei a moça a se sentar comigo. Ela veio, como um gato arisco, pisando para saber se o terreno lhe era digno de confiança – e, deixemos claro, por terreno eu me refiro a mim mesmo, nesse aspecto talvez a garota tropeçasse e afundasse suas belas pernas até o final – ninguém era obrigado a chegar perto de um ilustre desconhecido sem medo e sem ressalvas, em uma cidade como esta qualquer um pode ser um maníaco e todos os monstros parecem se disfarçar de pessoas. Talvez todas as pessoas sejam monstros também.
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Dez Cigarros
Paranormal"No fim, é isso que somos. Patéticas criaturas de tinta em uma realidade de papel, parecemos distantes dessa definição, queremos estar distantes dessa definição, apenas por não podermos enxergar a realidade com os olhos de quem pinta a tela." Esteva...