Quatro Centímetros

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†Quatro Centímetros†

A epifania me atingiu enquanto estava de joelhos ao lado da camisa. A noite anterior foi uma machadada em meu cérebro, mas soube que era verdade quando toquei a moeda em meu bolso, isso resolvia o mistério de como eu havia me sujado todo, o mistério da calcinha, o significado do sonho, mesmo que ainda não me lembrasse de toda a reunião, a quantidade absurda de pernas em minhas memórias, o som das sirenes, e o fato de eu ainda ter dinheiro depois de ter bebido ao ponto de esquecer tudo.

Mas não resolvia uma pergunta essencial a essa equação: Como diabos eu havia chegado em casa depois de desmaiar? Teria meu pai me carregado até lá? Se o havia feito não teria se dado ao trabalho de tirar minhas roupas e ao menos teria me esperado acordar para saber se eu havia compreendido a extensão da missão que me fora atribuída.

Ele não se daria esse trabalho.

Esperar e julgar incapaz não eram do feitio dele, Fortuna sempre julgou que a casualidade cuidaria de realizar o que ele não fazia e que meter as mãos era pior do que abster-se. Pois nas infinitas possibilidades existentes todas elas, em algum momento, se concretizariam, evitar era apenar adiar o inevitável para outro dia, adiantar era fazer com que o mesmo resultado fosse obtido duas vezes. Essa perspectiva sempre me pareceu cruel.

Cruel, não falsa.

A vida era um droga, e agora eu teria de lidar com o fato de não poder evitar todos os desastres do mundo, com o fato de que a realidade era um manto frágil demais para que eu pudesse livremente usar o poder que tinha. Olhei ao redor enquanto minha cabeça voltava a doer, uma pequena facada dentro do meu cérebro que agora trabalhava para me fazer compreender minha sina mortal.

Procurei o caderno entre meus pertences. Era uma coisa velha, cheia de rabiscos, mais um bloco de notas que um caderno em si. Pequeno o suficiente para caber em um bolso, complexo demais para ser compreendido sem anos de vivência e observação daquilo que era um mundo muito frágil. Deixei ele em cima da minha mesa de estar, tomei outro gole de conhaque, sentei no sofá para terminar o cigarro. Olhei o número anotado na calcinha. Passei ele para um papel, com calma. Depois disse para mim mesmo.

Apaguei o resto do que fumava em um cinzeiro rachado. Abri o caderno, olhando as anotações do fundo. Duas instruções por escrito, uma letra muito delicada, pequena e desenhada para ser do meu pai. Alguém naquela reunião era generoso o suficiente para escrever quais foram as instruções básicas, alguém subestimava demais o meu conhecimento e noção do que era ser uma entidade.

Eu tinha dez anos quando compreendi o que era o poder que carregava e nunca o havia subestimado depois disso, não até a noite anterior a aquele momento, isso era frustrante. Cocei a cabeça, pensando que aquilo era apenas cuidado em excesso e não uma ofensa, então comecei a ler aquela nota excessivamente cuidadosa de apenas duas ordens abertas. Muito cuidado com o uso dos poderes e muita atenção ao meu redor.

Nada disso ia além do que me fora ensinado. Muito cuidado se referia ao poder que tinha, o qual era, fundamentalmente, a capacidade de romper a realidade ou sobrepor uma nova realidade a uma antiga. É difícil explicar.

A realidade é uma coisa frágil e, enquanto entidade, ela se torna sensível e mutável como papel molhado ou tinta fresca...

Isso!

Imagine a realidade como um quadro recém-pintado. A tinta posta tão recentemente que você pode sentir o cheiro dela atacando seu cérebro. O pintor sai e deixa o quadro pronto, com sua tinta fresquinha exposta à luz do sol, a complexidade das feições em movimento das personagens ao fundo, os amantes apaixonados observando-se por janelas virtuais, os anjos no céu, os demônios no inferno, deuses não existindo, ao menos não à vista de todos. Tudo como é. Tudo muito promissor.

Então surge um sujeito intrometido e vê nos cantos da tela pequenas manchas de tinta, destoando por completo do quadro, um deslize do pintor, uma sujeirinha pequena. Ora, naturalmente, como uma pintura, vez ou outra uma falha acontece. Resolvendo remover aquela mancha do lugar o sujeito se aproxima com sua navalha afiada, porém quando ele olha bem a mancha na tela é um pequeno buraco, um furo na tela.

Cuidadosamente ele dá a volta no quadro, observando o furo na parte de trás e, com paciência, cola um pedaço de tela por trás do furo, para que a parte da tela não fique ali, com aquele buraco. Ao fazer isso ele volta para a frente da tela e aplica a tinta da parte que faltava ali. Os habitantes da tela não percebem o que aconteceu, o próprio pintor finge que nunca houve nada de errado ali, tudo fica bem.

Por outro lado, suponhamos que o reparador anônimo seja um pouco descuidado e que o buraquinho na tela realmente seja apenas uma mancha aos seus olhos. Então ele se move, com sua navalha para remover aquela manchinha, encaixa-a no buraco pequeno e o alarga, rasgando a tela. A tela se desgruda, uma parte se cola sobre a outra, as pobres pessoas de tinta se desfazem e deixam de existir, em algo que para elas é muito parecido com a morte.

Frágeis, como a própria tela na qual estão sobrepostas.

No fim, é isso que somos. Patéticas criaturas de tinta em uma realidade de papel, parecemos distantes dessa definição, queremos estar distantes dessa definição, apenas por não podermos enxergar a realidade com os olhos de quem pinta a tela.

É assim que uma entidade vê o mundo. Telas com falhas, e cabe a ele escolher reparar ou apenas ignorar, o problema é do pintor, não é? Se ignora todas então os buraquinhos nas múltiplas telas se alargam lentamente, até que todas elas tenham se consumido até desaparecer, sobrando apenas o vazio e a inexistência para todos. Não sobrando ninguém. A realidade se consome como nossas próprias vidas e desaparece, assim como nós. Todo o universo não passa, nessa perspectiva, de poeira em um pote. Ou de simples tinta.

Por isso era necessário muita atenção um minuto desatento em minha função e o mundo poderia apenas se rasgar em dois, para que os braços de alguma criatura colossal do submundo emergisse, ceifando toda e qualquer alma viva. Ou algo assim.

E isso era todo o trabalho que Fortuna deixara pra mim. Corrigir ou ao menos não provocar falhas na realidade. E seria muito fácil, pois corrigir os erros é simples.

A questão é aonde estão as falhas. Elas nem sempre são aparentes, e mesmo quando aparentes nem sempre causam estrago o suficiente para causar desespero, porém todas precisam ser corrigidas, apagadas e esquecidas, assim a vida segue e o mundo finge ser normal.

Fechei a garrafa de conhaque, preparei minha consciência para sair e encarar o mundo, olhei pela janela para o céu cinzento, quase sempre cinza. Cansativamente cinza.

O celular estava no lugar de sempre, ao lado da cama, sem bateria, coloquei ele no bolso de qualquer forma, alguém poderia querer ligar para mim quando me sentasse para recarrega-lo. Nunca fui um cara extremamente cuidadoso. Coloquei um cigarro no canto da boca, e então o celular chamou.

Não deveria ser um acontecimento marcante, pessoas recebem e fazem chamadas todo dia, não há nada de particularmente fantástico nisso. Mas não num celular desligado e não de um número que não deveria mais existir. Um número familiar, antigo em minha memória, vivo naquele passado distante. O número da casa na qual eu havia morado até os meus dez anos de idade, era o número que me remetia a um passado doloroso, ressecado pelo tempo, o que tornava a ferida menos evidente, mas não menos verdadeira. O número que Fortuna costumava discar quando queria saber se estávamos bem. O número que a escola pedia para saber para quem ligar quando eu me acidentasse. O número de telefone que minha mãe costumava usar.

Minha mão direita segurava o telefone, enquanto a esquerda estava a quatro centímetro da maçaneta, a boca aberta, um cigarro em queda-livre, esperando as palavras que eu deveria dizer, enquanto a mão direita se preparava para atender o telefone. A mensagem de uma chamada perdida apareceu, enquanto eu encarava a tela luminosa. Minha boca ressecada, sem saber o que fazer. Encarar o passado é difícil, encarar as dores do passado ainda mais. Joguei o celular sobre a mesa, peguei o cigarro do chão, fechei a porta atrás de mim.

A morte me esperava do lado de fora.

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