Delírios

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Mais do que tomar posse
das chaves junto do guarda,
era necessário encontrar a chave 
para abrir a porta do seu próprio caminho.    


Aos poucos, contar gotas vindas do teto se tornou o parâmetro mais viável para ter a noção das horas do dia mergulhado no interior totalmente escuro de um quarto quase vazio. Aquele era o lugar onde todos os sonhos viravam pesadelos.

Havia alguém lá dentro, um alguém que ouvia as palavras vindas do lado de fora se tornando mais fáceis de entender assim que os passos cessaram perto da porta. Chave posta na fechadura, ela foi aberta com gemidos metálicos.

Ainda que a luz externa avançasse timidamente até parte do aposento, o piscar dos olhos acostumados com o escuro não conseguia revelar os rostos daqueles que entravam sem avisar. Um deles estava de prontidão na entrada, para garantir a segurança; dois se posicionavam do lado de dentro, para conter eventuais surtos dos pacientes; o quarto homem sorria, já que sempre conseguia manter tudo sob controle por meio de medicamentos pesados, força bruta e armas de choque.

O quarto de azulejos frios era composto apenas por paredes do lado de dentro da porta pesada, onde uma maca de metal (ela tão robusta quanto antiga) prendia um rapaz pela cintura, pulsos e canelas com cintas de couro apertadas. Aquele era o padrão das solitárias, tipo de aposento que abrigava pacientes cujos tratamentos se diferenciavam dos demais por serem classificados como especiais.

De acordo com as normas rigorosas da Clínica de Reabilitação Mental São Benedito, as inspeções quinzenais das solitárias eram executadas à risca por um clínico supervisor, um assistente e um guarda, todos uniformizados a caráter e munidos de ferramentas necessárias para as suas funções.

- Paulo, como recém-contratado, você tem que prestar bastante atenção em cada detalhe no que fazemos. Esse carrinho com os remédios tem que ficar mais perto da maca. – Mesmo com a aparência mais desleixada do grupo, o homem à frente ditava ordens sem se preocupar, coçando a barriga avantajada por debaixo da blusa branca muito mal abotoada.

- Sim, senhor.

- Esse é o... tem tempo que não venho neste quarto fedido. Qual é mesmo o nome dele? – O homem que liderava o grupo questionava um dos acompanhantes.

- Esse se chama Augusto, senhor Renato. Vim tanto aqui que sei disso sem ver o prontuário.

As respostas do ajudante à porta do quarto sempre satisfaziam o superior.

- Agora me lembro. Na última vez que estive aqui foi no mês passado. Naquela ocasião prometi que cuidaria muito bem deste paciente "tão querido" no próximo encontro.

No crachá do mandante constava a informação: Renato Gonçalves – Supervisor Clínico.

- Victor, vai ficar aí parado olhando? Mexe essas manivelas debaixo da maca junto com o novato. Quero o paciente numa posição melhor pra mim.

As ordens foram prontamente atendidas pelos dois assistentes. Com a maca ereta após o ranger agudo das manivelas, a voz rouca de Renato quebrava a calmaria do ambiente com gritos acompanhados de tapas no rosto do rapaz.

- Acorda! Abre esses olhos direito!

- Água... seringa... dor! – Respostas que acordavam tremidas, sem rumo ou sentido.

- Vejam só! O rapaz está com mais um daqueles delírios malucos!

Augusto chacoalhou a cabeça para os lados, também os braços e as pernas, até se limitar ao estado de respiração acentuada.

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⏰ Última atualização: Apr 10, 2017 ⏰

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