Aquelas últimas palavras da comadre produziram sobre D. Maria o efeito de um raio: a velha remexeu-se na banquinha, tomada do maior desapontamento.
— Ora, comadre, exclamou depois da primeira emoção, esta não lembra ao diabo... por isso eu sigo a regra antiga de me não fiar em coisa que traz calções... Safa... que esta pôs-me sal na moleira.
A comadre, vendo estas boas disposições, aproveitava-se delas para fazer melhor o seu papel, e respondeu:
— Pois também o que se havia de esperar de um sujeito como aquele?... um homem que não abre a boca que não minta... que tem uma língua de Lúcifer?... Quem contasse com aquilo era mesmo para se perder.
— É verdade, senhora; nunca vi mentiroso, nem maldizente maior...
Nunca D. Maria até então tinha encontrado em José Manuel as qualidades que agora descobria tanto em relevo.
— Se eu fosse parente da rapariga havia pôr uma demanda ao tal diabo que o havia ensinar... Por isso é que ele me não aparecia por cá há tanto tempo... andava cuidando nos seus arranjos.
Mal tinha D. Maria acabado de pronunciar estas últimas palavras quando se ouviu bater à porta, e a voz de José Manuel pedir licença.
— Aí está ele... segredo... não quero que se saiba que fui eu, disse a comadre apressada.
— Ora, respondeu D. Maria, eu cá para isso sou boa.
José Manuel entrou. D. Maria, que não costumava guardar o que sentia, recebeu-o friamente; a comadre porém fez-lhe um rasgado cumprimento.
— Seja bem aparecido, disse, bons olhos o vejam.
— Tenho andado aí ocupado com alguns arranjos...
— Arranjos... disse D. Maria trocando com a comadre um olhar significativo.
José Manuel, inocente em tudo, ficou pasmo, sem entender o que queria aquilo dizer; entretanto, segundo o costume, não perdeu ocasião de armar uma peta.
— Sim, uns arranjos, acrescentou; houve um negócio muito sério em que estive metido, e que me ia dando bem que fazer; sinto não lhe poder contar, porque é segredo.
A comadre fez um gesto, como quem queria dizer — aí vem uma peta; D. Maria, porém, que estava preocupada pela conversa que há pouco tivera, entendeu que José Manuel se referia ao roubo da moça; e abanando a cabeça, disse por entre os dentes:
— Hum... entendo...
A comadre estremeceu temendo que D. Maria não desse com a língua nos dentes, e que a questão do roubo da moça tivesse de ser averiguada em sua presença; porque nesse caso seria ela apanhada em flagrante mentira, e estava tudo perdido. Começou portanto a provocar a José Manuel a que declarasse qual era o negócio sério em que estivera metido; contava com algumas das petas continuadas, e assim se desviaria a conversa do ponto que ela não queria ver tratado em sua presença.
Deixemo-la nesse empenho lutar com as negaças e fingidos mistérios de José Manuel.
Desde o dia em que Leonardo fizera a sua declaração amorosa, uma mudança notável se começou a operar em Luizinha, a cada hora se tornava mais sensível a diferença tanto do seu físico como do seu moral. Seus contornos começavam a arredondar-se; seus braços, até ali finos e sempre caídos, engrossavam-se e tornavam-se mais ágeis; suas faces magras e pálidas, enchiam-se e tomavam essa cor que só sabe ter o rosto da mulher em certa época da vida; a cabeça, que trazia habitualmente baixa, erguia-se agora graciosamente; os olhos, até aqui amortecidos, começavam a despedir lampejos brilhantes; falava, movia-se, agitava-se.
A ordem de suas idéias alterava-se também; o seu mundo interior, até então acanhado, estreito, escuro, despovoado, começava a alargar os horizontes, a iluminar-se, a povoar-se de milhões de imagens, ora amenas, ora melancólicas, sempre porém belas.
Até então indiferente ao que se passava em torno de si, parecia agora participar da vida, de tudo que a cercava; gastava horas inteiras a contemplar o céu, como se só agora tivesse reparado que ele era azul e belo, que o sol o iluminava de dia, que se recamava de estrelas à noite.
Tudo isto dava em resultado, pelo que diz respeito ao nosso amigo Leonardo, um aumento considerável de amor; também ele foi o primeiro que deu fé daquelas mudanças em Luizinha. Entretanto, apesar de lhe crescer o amor nem por isso lhe nasciam mais esperanças.
Depois da declaração não se tinha adiantado nem mais uma polegada, e a única coisa talvez que o alentava era um certo rubor que súbito subia às faces de Luizinha quando acontecia (raras vezes) que se encontrassem os olhos dela com os seus. A soma total destas adições era uma raiva que lhe crescia n'alma, aumentando todos os dias de intensidade contra José Manuel, a quem em seus cálculos atribuía todo o seu atraso.
Dadas estas explicações, voltemos a dar conta do resto da cena que deixamos suspensa.
À força de instâncias a comadre conseguiu que José Manuel referisse qual o negócio de alto segredo em que se tinha achado envolvido.
— Pois bem, disse ele finalmente, se prometem toda a discrição, contarei.
— Ora, nem tem que recomendar isso.
Com as negaças e mistérios que tinha guardado até então, José Manuel não fizera mais do que ganhar tempo para imaginar a mentira que havia de pregar: a comadre contava com isso.
Ele começou:
— Saibam vosmecês que fui um destes dias chamado a palácio...
— Ui! exclamou a comadre.
— Aí está o resultado, disse D. Maria; mas não se pagam na outra vida, é mesmo nesta.
— Resultado de quê? perguntou José Manuel surpreendido.
— De nada; continue.
José Manuel enfiou então tomando por tema aquelas primeiras palavras que lhe tinham vindo à boca, uma mentira muito sem sabor, que nós poupamos aos leitores. Não foram porém satisfeitas as vistas da comadre, que queria desviar a conversa do furto da moça.
Terminada a história, José Manuel começou a instar com D. Maria para que lhe desse explicação das palavras duvidosas que há pouco havia dito a seu respeito. A comadre, assim que viu o negócio neste pé, foi tratando de retirar-se, depois de trocar com D. Maria um olhar que queria dizer: — não me comprometa.
D. Maria a princípio quis sustentar o segredo; afinal não se pôde conter, e soltou contra José Manuel uma grande alicantina, dizendo que toda a cidade estava cheia do horroroso escândalo que ele acabava de cometer roubando uma filha-família.
O homem foi às nuvens, e jurou e trejurou que estava inocente em tudo aquilo. Nada porém lhe valeu.
D. Maria foi inflexível.
Protestou de novo que se ela fosse parenta da moça o Sr. José Manuel se havia de ver em calças pardas com o negócio; e terminou por dar-lhe a entender que ele era um homem muito perigoso para ser admitido em uma casa de família.
José Manuel saiu completamente corrido e cismando em quem poderia ter sido o autor de semelhante intriga.
Quanto a D. Maria, ficou muito satisfeita, pois, tendo no seu caráter um grande fundo de honestidade, julgava ter feito uma boa ação rompendo com José Manuel, que ficara com efeito, como o calculara a comadre, perdendo muito no seu conceito.
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Memórias de um Sargento de Milícias (1854)
RomanceObra do brasileiro Manuel Antônio de Almeida.