Chegaram todos depois de longo caminhar, e quando já brilhava nos céus um desses luares magníficos que só fazem no Rio de Janeiro, a uma casa da rua da Vala. Naqueles tempos uma noite de luar era muito aproveitada, ninguém ficava em casa; os que não saíam a passeio sentavam-se em esteiras às portas, e ali passavam longas horas em descantes, em ceias, em conversas, muitos dormiam a noite inteira ao relento.
Como os nossos conhecidos já tinham dado um grande passeio, adotaram o expediente das esteiras à porta, e continuaram assim pela noite em diante a súcia em que haviam gasto o dia, pois aquilo que Leonardo vira nos Cajueiros, e em que também tomara parte, era o final de uma patuscada que havia começado ao amanhecer, de uma dessas romarias consagradas ao prazer, que eram então tão comuns e tão estimadas.
Agora devemos dar ao leitor conhecimento da nova gente, no meio da qual se acha o nosso Leonardo. Se nós pudéssemos socorrer aqui do amigo José Manuel, sem dúvida nos desfolharia ele toda a árvore genealógica dessa família a quem o amigo do Leonardo chamava a sua gente: porém contentem-se os leitores com o presente sem indagar o passado. Saibam pois que a família era composta de duas irmãs, ambas viúvas, ou que pelo menos diziam sê-lo, uma com três filhos e outra com três filhas; passando qualquer das duas dos seus quarenta e tantos; ambas gordas e excessivamente parecidas. Os três filhos da primeira eram três formidáveis rapagões de 20 anos para cima, empregados todos no Trem; as três filhas da segunda eram três raparigas desempenadas, orçando pela mesma idade dos primos, e bonitas cada uma no seu gênero. Uma delas já os leitores conhecem; é Vidinha, a cantora de modinhas; era solteira como uma de suas irmãs; a última era também solteira, porém não como estas duas. O amigo do Leonardo que explique o que isso quer dizer, e explicando dará também a conhecer o que era ele próprio na família. Os mais que se achavam presentes eram pela maior parte vizinhos que se reuniam para aquelas súcias, que eram tradicionais na família.
Quando chegaram à casa, o amigo do Leonardo tomou as duas velhas de parte, e começou a conversar com elas, sem dúvida a respeito do Leonardo, pois que o olhavam todos três durante a conversa; e mesmo quem tivesse o ouvido atilado teria escutado às velhas estas palavras:
— Coitado do moço!...
— Ora, vejam que pai de más entranhas!...
Outro qualquer que tivesse mais idade, ou antes, falando claro, mais juízo e outra educação, envergonhar-se-ia talvez muito de achar-se na posição em que se achava o Leonardo, porém ele nem nisso pensava, e o que é mais, nem mais pensava naquilo que até então lhe não saía da cabeça, isto é, em Luizinha de um lado e José Manuel do outro: agora não via senão os olhos negros e brilhantes, e os alvos dentes de Vidinha; não ouvia senão o eco da modinha que ela cantara. Estava pois embebido num êxtase contemplativo.
No mais pensaria quando lhe restasse tempo.
Mal se haviam todos sentado em uma larga esteira junto à soleira da porta sobre a calçada, o Leonardo propôs logo que se cantasse uma nova modinha.
— Qual... respondeu Vidinha acompanhando este qual da sua costumada risada; estou já tão cansada... que nem posso!
— Ora... ora... disseram umas poucas de vezes. Além do costume das risadas tinha Vidinha um outro, e era o de começar sempre tudo que tinha a dizer por um qual muito acentuado; respondeu ainda portanto:
— Qual... pois se eu também já cantei tudo que sabia. Qual, meu Deus! nem eu posso mais! — Ainda não cantou a minha favorita, disse um dos presentes.
— Nem a minha, disse outro.
— Eu também, acrescentou outro, ainda não lhe pedi aquela cá do peito.
— Qual, meu Deus! onde é que isto vai parar!
— Ora, mana, não se faça de boa.
— Ai, criatura, disse uma das velhas, quereis que vos reze um responso para cantardes uma modinha?
Leonardo, vendo a sua causa advogada por tantas vozes, conservou-se calado. Tentados mais alguns meios, e feitas mais algumas negaças, Vidinha decidiu-se, e tomando a viola cantou, segundo a indicação de uma das velhas, o seguinte:
Duros ferros me prenderam No momento de te ver;
Agora quero quebrá-los, É tarde não pode ser.
Este último passo acabou de desorientar completamente o Leonardo: ainda bem não tinham expirado as últimas notas do canto, e já, passando-lhe rápido pela mente um turbilhão de idéias, admirava-se ele de como é que havia podido inclinar-se por um só instante a Luizinha, menina sensaborona e esquisita, quando haviam no mundo mulheres como Vidinha.
Decididamente estava apaixonado por esta última.
O leitor não se deve admirar disto, pois não temos cessado de repetir-lhe que o Leonardo herdara de seu pai aquela grande cópia de fluido amoroso que era a sua principal característica. Com esta herança parece porém que tinha ele tido também uma outra, e era a de lhe sobrevir sempre uma contrariedade em casos semelhantes. José Manuel fora o primeiro; vejamos agora qual era, ou antes quem era a segunda.
Se o leitor pensou no que há pouco dissemos, isto é, que naquela família haviam três primos e três primas, e se agora acrescentarmos que moravam todos juntos, deve ter cismado alguma coisa a respeito. Três primos e três primas, morando na mesma casa, todos moços... não há nada mais natural; um primo para cada prima, e está tudo arranjado. Cumpre porém ainda observar que o amigo do Leonardo tomara conta de uma das primas, e que deste modo vinha a haver três primos para duas primas, isto é, o excesso de um primo. À vista disto o negócio já se torna mais complicado. Pois para encurtar razão, saiba-se que haviam dois primos pretendentes a uma só prima, e essa era Vidinha, a mais bonita de todas; saiba-se mais que um era atendido e outro desprezado: logo, o amigo Leonardo terá desta vez de lutar com duas contrariedades em vez de uma.
Mas por ora de nada sabia ele, e entregava-se tranqüilo às suas emoções sem se lembrar do que qualquer se lembraria, que entre primos e primas há assim um certo direito mútuo em negócio de amor, que muito prejudica a qualquer pretendente externo.
Gastaram grande parte da noite ali sentados, e trataram de recolher-se já muito tarde.
O amigo do Leonardo, a quem daqui em diante trataremos pelo seu próprio nome de Tomaz com o apelido — da Sé — ambos herdados de seu pai, declarou que o seu amigo ficava ali por aquela noite, por já ser muito tarde; quis assim poupar-lhe um vexame, e mostrou nisto ser bom amigo.
Agora que o nosso Leonardo está instalado em quartel seguro, vamos ocupar-nos de alguma coisa de importante que havíamos deixado suspensa.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Memórias de um Sargento de Milícias (1854)
Roman d'amourObra do brasileiro Manuel Antônio de Almeida.