10. O Peso do Meu Fardo

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Li Ka Hua


Eu não deveria ter amigos, mas era impossível fugir de Kaori. Ela era como o sol, não importava que você se abrigasse em um lugar protegido, o calor ia te perseguir do mesmo modo. Assim, quando, mesmo contrariando meu gelo e forçada ignorância, ela insistiu em sentar comigo no almoço, começou a frequentar o térreo onde eu ficava estudando e, apesar do meu silêncio, sentava ao meu lado no ônibus que eu pegava para ir para casa — mesmo morando na direção oposta —, eu não tive como escapar dela.

Kaori era o tipo de pessoa que vive alegre independente do momento ser bom ou ruim, ela brilhava como o sol depois de uma chuva muito forte e era fofa como um anime. Seus olhos eram vívidos e cheios de luz, mesmo quando ela ficava triste eles expressavam esperança, creio ter sido essa uma das principais razões que me impediram de resistir a ela. Como todas as meninas na escola, Kaori era apaixonada por Tokugawa Yuki, o rei do colégio. Ele era da classe 3-A, bom em natação, estrela do futebol e do baseball, aluno com as melhores notas da escola e incrivelmente tímido, mas totalmente ciente do seu poder.

Yuki já havia partido mais corações com rejeições do que era capaz de contar, andava pelos corredores como uma celebridade percorrendo o tapete vermelho, suas conquistas eram seus troféus e ele os exibia com orgulho. Uma coisa que aprendi durante toda a minha vida escolar — fosse na China ou no Japão — é que o propulsor da paixão é a indiferença. Quanto mais fria e distante você trata a outra pessoa, mais aumenta a possibilidade de ela se apaixonar por você, pois isso tornará você interessante, enigmático, desafiador. E parece que isso favorece o jogo que chamam de amor, quanto mais difícil, mais vale o esforço, uma coisa que eu realmente sou incapaz de compreender. Kaori já havia sido rejeitada por Yuki como muitas outras meninas da escola, ninguém sabia quem era, mas ele afirmava ter uma eleita.

— Quem você acha que é, Ka Hua-chan? — Inquiria ela, repetidas vezes, enquanto almoçávamos.

— Eu não faço a menor ideia, Kaori... — Admitia. — Mas não deve ser muito difícil descobrir, faça uma lista das que ainda não foram rejeitadas por ele.

— Como não pensei nisso? — Riu ela. — Você é tão inteligente!

E então o mundo ficava bonito de novo, porque ela estava bem, porque tudo era bom. Eu nunca disse a Kaori sobre o fato de ver a morte ou sobre como eu sabia que meu primo Thomas ia morrer antes de acontecer, mas nos momentos que as visões me assombravam, me sugando para uma realidade distante e pondo sobre a minha pele e mente os horrores do fim de alguém, ela estava sempre lá quando eu abria os olhos triste e chocada demais para suportar. Não fazia perguntas, simplesmente me abraçava, me permitia chorar e repetia daijōbu[1] repetidas vezes. Logo depois, eu estava vendo revistas e sites do momento ou paquerando algum gaijin de quem ela era fã e debatendo se a cor da pele era natural ou não, porque era a mágica que Kaori era capaz de fazer, ela conseguia me arrancar de qualquer tempestade com a sua amizade única e o seu jeito vivo de ser.

Por isso, quando a morte dela veio para mim eu não soube como lidar com aquilo. Era domingo, minha mãe e eu estávamos repassando a lição de inglês do dia anterior antes de avançar para uma próxima enquanto meu pai, ao meu lado, lia despreocupadamente um livro e checava o e-mail vez ou outra para ver se havia algo a resolver no hotel onde estava trabalhando — que não fazia parte da rede de hotéis da sua família. Começou, como sempre, com uma forte dor de cabeça enquanto minha mãe tentava explicar a lógica da formação de frases passivas.

— Você está prestando atenção, Li Ka Hua? — Repreendeu-me.

Qīn'ai de, tudo bem? — Meu pai largou o livro sobre a mesa e virou-se para mim. — O que está sentindo, dói em algum lugar?

Olhos Vazios ✔ [DISPONÍVEL ATÉ 30/11]Onde histórias criam vida. Descubra agora