Era sempre assim. Terminava julho, as ruas, paredes e muros viravam lixeira de publicidade eleitoral. Aquelas caras diversas e conhecidas dos candidatos, sempre mais suntuosas e mais bem alimentadas, num contraste mordaz com o resto do povo, do eleitorado.
Por esses tempos montava-se palanques, anunciava-se comícios, traziam bandas de fora, prometiam o diabo e o rabo. Logo que brotava a manhã, mal se tinha terminado a algazarra dos passarinhos, ouvia-se, sonoro e arrastado, um forró de letra fácil para propagandear candidato:
Agora é 15, é 15
Agora é 15, 15, 15, 15, 15
João Testa, vamos lá
Agora é 15, 15, 15 pra mudarÉpoca de barulho e pouca paz. Pela manhã inteira passava moto e carro puxando alto-falante, o volume nas alturas. E os jingles emendavam pela tarde, ribombavam até a hora da novela sem dar trégua e sem pedir licença.
Nos terrenos baldios, essa molecada vadia trepava árvores, comia o abiu do pé, o biribá, os ingás e as mangas. Troçavam com os carros de som, o vozerio do núncio cortando aquele resto de calmaria das tardes.
Caía logo no gosto do povo, era bem verdade. Não tardava, os jingles grudavam na cabeça e na ponta da língua. Era moda que pegava que nem varíola, se imprimia na cultura, e o candidato fazia a vez.
Naqueles dias próximos à insuspeita decisão, nos palanques, da tardinha até a noite feita, os oradores se altercavam e os discursos se cosiam, desde os mais tímidos aos mais teatrais, de gente letrada e gente da rua, de gente certa e gente fingida ― tudo gente nossa. Perguntasse àquela gente eleitora no comício qual seria a função do candidato quando eleito, sabiam não! Que ninguém carecia disso para se eleger, bastava fazer figura: distribuir uns apertos de mão, uns sorrisos, sujar o colo com uns moleques melentos, acenar para distantes, dar umas caronas, doar umas caridades aos mais precisados... Isso bastava. Receita de se eleger político que era sempre infalível, tiro e queda.
Nessas épocas estacionavam carros de novela, apeavam candidatos em turnê pelas casinhas e casebres sempre filando um cafezinho, uma fatia de bolo de fubá, mendigando uma promessa de voto. Iam embora contentes da visita fazendo as contabilidades mentais, computando os cartazes da concorrência, pedindo para que também deixassem pregar a sua careta no portão, para fazer figura. Tudo era para fazer figura, para cair na iminência do gosto do povo.
Numa tarde daquelas, os carros de som anunciaram dois comícios para a mesma noite. Num pedaço da cidade, o candidato vermelho com seus gatos pingados. No outro, o candidato verde revendo o discurso. Não que esses dois fossem os únicos à eleição. Os demais ― uns pobres ―, nem para fazer a vez...
De pé no meio da multidão verde, os braços cruzados sobre o busto caído e cansado, a senhora dona Joana ouvia. Era uma dona pequenota, rotunda, acaboclada, preta de sol. Religiosa devota, viúva, mãe e avó de uns tantos rondonianinhos. Ótima ouvinte de comícios: acedia a tudo, pouco entendia. Era já o último discurso da noite, o discurso da vitória vaticinada, e esse cabia exclusivo ao ventrudo candidato à poltrona da prefeitura, o senhor João Adalberto. Homem de palavras poucas e escolhidas, texto ensaiado, garganta seca e falar tabaréu. Homem da gente.
Ergueu as últimas palavras, num agradecimento antes à sua legenda e depois ao seu eleitorado. Ninguém notou a troca infeliz, nem ele mesmo decerto, que aquele canto de avenida já estava tomado de súbita explosão de aplausos e assobios e alaridos calorosos que vinham lhe dar as glórias antecipadas.
Nesse momento, foi de encontro àquela senhora, a dona Joana, à passadas largas, um dos candidatos a vereador da oposição que ali espreitava o movimento inimigo. Era o Filismino da Tapioca, sob o número 12345. Gente nossa, homem de bem ― diziam. Pegou a dona Joana já saindo da multidão, coitada. Mulher pobre, sempre precisada, o candidato nem fez firula: saltou logo ao ponto, à receita!
Ofereceu uma viagem de graça à capital, pois sabia que a mulher precisava ir ao doutor sem, porém, ter meios de ir. E costurou a esta oferta umas telhas que faltavam na sua casa, que não mais sofreria com as goteiras, pobre dela. Era todo bonomias e compreensões, tudo de coração. Só queria por troca o voto dela!
Acompanhou a velha e a deixou no portão de casa, portão de tábua carcomida, remendada, rangendo. Os cães latiam na rua estreita sem calçamento, sem iluminação. Que valor inestimável que o voto tem! Aquilo lhe parecia um ótimo negócio: lucraria uma viagem, faria uma checagem no doutor. Santo Deus, só ela sabia o quão aquela dor na lombar a vinha matando... Um ótimo negócio!
No dia combinado, a dona foi ao doutor na capital. Depois ganhou também as telhas baratas que o candidato tapioqueiro havia prometido, tudo de graça e de coração. Mas a velha ria toda por dentro, de tão engraçado que era! No dia da eleição votou noutro candidato, votou na legenda verde! Ria à toa! Que valor inestimável o voto tem ― e disso ela sabia tanto que melhor que ninguém!
Venceu com larga vantagem o senhor João Adalberto e seus derivados. Perdeu o oponente, e perdeu também Filismino da Tapioca para a vereança. Este último, aliás, sempre que via a dona Joana por aí na rua, abria o sorriso cheio de nódoa e agradecia e agradecia, nas entrelinhas, o voto certo que nunca duvidou ter vindo dela.
Pilantrazinho! Esse aí nem pra fazer a vez.
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Notas sobre o Mundo
Historia CortaMuitos casos, casos modestos, mas todos merecedores de algumas notas. Reuni todos nesta nova antologia, na verdade uma nova aposta de estilo narrativo, que será menos pretensiosa e mais eventual. 🥇 1° colocado em "Conto", Concurso Oceans, 2020.