Capítulo 3 - Mirror

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O rapaz. Seria possível estar a vê-lo? Naquele momento, para mim tudo seria possível, eu estava morta mas continuava na terra. Sempre me perguntei como seria a vida após a morte. Mas a única questão que vagueava na minha mente era se eu seria a única alma perdida aqui. Voltei a encarar o espelho e projetei as minhas mãos com força contra o mesmo na esperança de conseguir alcançar o rapaz mas apenas fiquei com as mãos entre o espelho, sentido um pequeno baloiçar da porta do armário. Eu não era real. Não conseguia sentir fisicamente as coisas mas de uma maneira curiosa, elas mexiam se ao meu toque. Era como andar no vento. Tu sente-lo bater na tua cara, e mesmo assim consegues atravessa-lo. Era estranho e nada era nítido na minha cabeça.

Matei me para deixar de sentir coisas mas eu de uma forma ligeira sentia. Senti medo ao ver o rapaz na multidão. Senti o leve embater das mãos no espelho. Senti-me andar, senti aquela ansiedade miudinha. Merda. Não percebia nada do que estava a acontecer. Como é que uma alma, uma pessoa morta consegue sentir? E fazia-me confusão porque não era sentir como vocês, seres vivos, que sentem o vosso coração pulsar todos os dias, sentem as coisas onde tocam, sentem a leve brisa bater-vos na cara. Desde as coisas mais simples às coisas mais complexas. Eu apenas sentia coisas ligeiras porque o resto de mim era feito de nada e era isso mesmo que eu sentia. Nada.

Mantive o armário aberto e voltei para a janela, onde à nem uma hora atrás me tinha mandado. Olhei por ela, como sempre fazia quanto estava triste, conseguindo ver tudo o que me rodeava, talvez por ser o prédio mais alto dali. Ainda se viam poucas pessoas a murmurarem alguma coisa perto do sítio onde antes estava o meu corpo agora apenas com uma fita e uma poça de sangue seco. Para além dessas vozes fracas o silêncio predominava naquela zona trazendo me uma pequena paz interior. Continuava a observar as ruas largas mas com pouca gente até que algo me chamou à atenção. Nos pequenos prédios à frente do meu, mais para a direita, o rapaz que me observava assustado à tempos anteriores, estava na sua varanda.

Estava longe para perceber a sua expressão mas tinha a certeza que era ele. Aquela camisola azul larga e cabelo castanho bagunçado eram reconhecíveis em qualquer lugar. O rapaz parecia olhar na minha direção mas como poderia eu ter tanta certeza se ele estava longe? Ah como eu odeio estas ruas largas, pensei para mim. Levantei a minha mão direita e acenei, talvez ele me conseguisse ver acenar, talvez ele me conseguisse ver de todo. Ele continuou parado, e via-se o cabelo baloiçar um pouco com o vento mas numa questão de segundos entrou para casa e lá estava eu de novo sozinha. Talvez ele não me visse. Mas eu queria vê-lo, queria voltar a ver o seu rosto assustado, a sua camisola azul e o seu cabelo bagunçado. O espelho.

Voltei para dentro e fiquei a observar um espelho que não me refletia. Esperei que os borrões aparecessem novamente em vez do meu reflexo, e rapidamente se tornassem numa imagem nítida do rapaz. Esperei e ao fim do que me pareceu uma eternidade a sua imagem reapareceu. E desta vez não foram vagos segundos. Ele estava sentado numa cama, talvez no próprio quarto, os braços envolviam as suas pernas e o seu queixo encostados aos joelhos. Ele chorava. Lágrimas escorriam lentamente pelo seu rosto e mais do que nunca eu queria abraça-lo, mesmo que não o sentisse, e perceber o que o magoava. Queria ajuda-lo, da maneira que nunca ninguém fizera comigo. Fiquei a observar aquele ser humano durante minutos, a sentir a sua tristeza dentro mim quando de repente a imagem desvaneceu-se e deixei de o ver ficando apenas a observar o meu quarto através do reflexo do espelho.

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⏰ Última atualização: Apr 29, 2017 ⏰

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