Capítulo 3: O parasita

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Venho definhando lentamente desde minha última trágica experiência. A imagem daquele crânio rachado pulsante onde habitava um parasita pútrido e repugnante, consumindo o que sobrava de humanidade daquele corpo que, certamente, havia desfalecido a muito tempo e era mantido de pé por aquela força macabra impregnava minha imaginação. Como era viver com tal monstro habitando sua mente?

Não comia e não me levantava, estava quase catatônico quando falavam comigo, não conseguia sequer encará-los. Tudo que pensava era voltar a minha antiga vida, a minha família e minha casa e esquecer de uma vez tudo o que vivi aqui, porém me torturava saber que não lembrava onde morava, quem eram meus pais. Meu deus... o que fizeram comigo?

Toda minha inquietação e relutância em fazer os exercícios e exames logo despertaram a fúria da doutora, a de perfume doce como dama da noite, que buscava um jeito de me colocar de volta a ativa, hora me seduzindo com promessas, hora me ameaçando livremente.

— Não perca mais um segundo sequer do seu sossego com aqueles párias, eles eram condenados que optaram livremente em participar dos experimentos.

— Eles eram seres humanos, diabos com isso.

— Seres humanos horríveis, presidiários de diversas penitenciárias espalhadas pelo norte e nordeste do país. Muitos foram pegos durante rebeliões rapidamente abafadas. Perante aos olhos do grande público, eles já estavam mortos.

— O que vocês fizeram com eles? O que era aquele monstro que habitava a mente.

— Um experimento de outro complexo que não estou autorizada a repassar informação para você.

— É o parasita alienígena, não é mesmo? Não pense que não consegui ouvir algumas conversas pelo corredor, vocês estão infectando propositalmente essas pessoas. Estão transformando elas em monstros sem mente, feitos apenas para matar. Pois saibam que não irão fazer isso comigo.

— Ora ora, senhor Carvalho... — Ela parecia especialmente descontraída nesse momento, tirou o óculos enquanto o limpava em seu avental, deixou ainda escapar um leve sorriso pelo canto de seu rosto enquanto me olhava com um certo desprezo que só não me perturbaria mais do que tinha a dizer. — E como sabe que não o infectamos ainda?

Isso foi o suficiente para derrubar o meu mundo. Na hora senti uma exaustiva fraqueza, senti até que ia desmaiar, o chão parecia se mexer enquanto todas as vozes ficaram abafadas, a visão começava a escurecer rapidamente. Porém consegui respirar fundo e segurar a sensação de desmaio. Devo ter olhado com a expressão mais assustada que tive em toda minha vida, pois a doutora olhava com um olhar ainda mais divertido, como se tivesse sucesso no pequeno joguinho mental que estava pregando comigo.

— Gostaria que ficasse um pouco a sós com seu pensamento agora, senhor Carvalho. Espero encontrá-lo mais disposto a cooperar na próxima vez que voltar.

Passei uma enorme quantidade de tempo sozinho, apenas pensando. Não sentia o tempo decorrer pelos efeitos do soro e prolongada isolação do tempo lá fora. Mas sabia que haviam se passado horas. Não conseguia sequer piscar os olhos imaginando aquela gosma pútrida circulando em meu cérebro, lentamente roubando o que me sobra de humanidade e racionalidade.

Será por esse motivo que tenho melhorado minhas aptidões físicas? Não... o soro, o soro certamente é limpo! É por ele. Mas, e a sensação de sono que não tenho já a tanto tempo? Recentemente sentia um insistente formigar nos olhos, às vezes sentia também um leve comichão riscar a nuca da minha mente, por vezes mudando de lugar e indo para os lóbulos, ora a testa parecia pesar. Meu deus, eu devo ter esse monstro dentro de meu corpo agora mesmo, sei disso!

Tentava pensar de novo na minha casa, na minha vida pacata. Mas até mesmo isso esses demônios tiraram de mim. Quem é minha família? Onde de fato moro? Será eu também... um desses detentos que estão servindo de cobaias para esses experimentos terríveis? Todas essas perguntas me perturbavam. E foi nesse estado paranoico que pude escutar ao longe um distúrbio na plataforma.

Só pude ouvir ao longe o que me pareceu uma explosão. Algumas das outras experiências feitas na plataforma tinha saído errado, muito errado! Não sabia exatamente o que, apenas senti que essa era a oportunidade perfeita. Não muito depois vi a doutora entrar, tentando esconder o olhar surpreso por algo ter dado errado e estar fora de seu controle. Ela também não fazia ideia do que eu podia ouvir e não. Mas fazia questão de tentar manter as aparências. Estava acompanhada de dois guardas.

— Teremos de realocá-lo novamente, senhor Carvalho. Nos acompanhe até seu próximo alojamento.

Ainda que seu olhar continuasse frio, sentia o coração palpitar de forma acelerada, e agora com a porta aberta pude ouvir de forma mais clara a confusão que estava se desenrolando. O parasita que estava nos presidiários conseguiu infectar outras pessoas. A plataforma inteira estava um caos pois lentamente as pessoas infectadas estavam atacando e matando as outras.

Ter escutado todo o horror e caos me fez refletir sobre mim mesmo, teria eu o mesmo fim? Sentia meu corpo formigar e esquentar como se tomado por uma grande febre, talvez a doutora tenha conhecimento dos perigos da experiência e veio aqui para liquidar-me.

Pensar isso me fez despertar uma fúria em mim que não pude controlar, empurrei a doutora contra a parede e resisti aos dois guardas, matando ambos. A doutora no chão conseguiu alcançar a pistola e me acertou no braço, mas consegui segurá-la antes de um segundo disparo e quebrar seu braço. Ainda que tomada pela dor ela conseguiu chutar sua arma para o corredor me impedindo de pegá-la, pois outros guardas vinham descendo pelo corredor abrindo fogo sem cerimônia.

Corri pelo ambiente ainda um pouco atordoado pela raiva. Senti outros dois tiros no corpo, mas meu estado de euforia me fez incapaz de sentir dor. Talvez pelo soro, talvez pelo parasita... a esse ponto pouco me importava. Em meio a correria vi o ambiente onde mantinham preso as duas garotas. Corri para a sala do controle e liberei as trancas de suas celas. As garotas logo perceberam que estavam livres. A irmã mais assustada foi a que mais hesitou em sair, porém pôs-se ao lado de fora e encarou sua irmã gêmea pela primeira vez em sua curta vida. Sentia-se como enfeitiçada por um espelho mágico ao tocarem-se com as mãos pela primeira vez.

O belo momento entre as duas poderia ter durado uma eternidade, se não fosse pelo completo clima de caos tomado pelo lugar. Uma segunda explosão veio acompanhada de algumas espécies de monstros que pareciam animais extintos, a esse ponto de minha jornada não sabia mais explicar o que era real e o que não era.

Enquanto a irmã assustada correu para se esconder, a mais agressiva pegou um estilhaço de vidro e pulou no pescoço de uma das doutoras que examinava ela, cortando sua jugular, assim como eu ela tinha contas a serem resolvidas nesse lugar, uma dívida que só poderia ser resgatada com sangue.

Na minha corrida para a sala onde armazenavam os cogumelos psicotrópicos que me disparam a adrenalina, travei uma luta feroz com algo que eu juro se assemelhar a um tigre dente-de-sabre. Ainda que tenha uma força desproporcional devido aos experimentos que passei, perdi muito ao lutar contra o animal, que feriu-me abertamente o corpo, o que me fez chegar aos meus últimos suspiros a sala dos cogumelos. Arranco boa parte da minha roupa e esfrego os fungos pelo meu corpo, o resultado é praticamente instantâneo.

A minha visão fora completamente distorcida. Mal posso distinguir as formas humanas dentre os colossais monstros que andaram produzindo por aqui. Meus sentidos vão pouco a pouco se perdendo, tudo que sinto é apenas uma constante raiva irracional, profunda que toma toda minha vontade, que se mistura a uma terrível adrenalina suicida. É o parasita assumindo controle do meu corpo, eu logo não serei mais um ser humano, apenas uma massa disforme e contorcida que luta e mata, até morrer, até infectar outros. E não há um só ser humano nessa plataforma que eu não esteja disposto a matar.

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