Terroso era o cheiro que penetrava as narinas de Moacir enquanto ele e a irmã corriam pela mata, cobertos apenas por tiras de folhas trançadas e pinturas guerrilheiras pelo corpo. A tanga que usavam na cintura era abanada pelo vento que lhes bagunçava todo o cabelo, ambos de fios longos, e o agridoce das folhas incrustavam suas peles quando esbarravam nelas. Janaína ia na frente, fitava as regiões ocultas pelas árvores com a atenção dobrada. Erguia o queixo para seguir melhor um rastro que Moacir não seguia – ele, por sua vez, mantinha a flecha preparada no arco e apontava, em guarda, sempre que ouvia algum som que quebrasse a melodia da mata.
— Estamos perto, posso sentir. — Tinham dobrado a noroeste quando Janaína, sem olhar para trás, anunciou.
— Tem certeza? Falou o mesmo há meia hora atrás. — Moacir não deixou resquício de descontentamento na voz, mas havia certa preocupação nos olhos negros e sempre atentos.
— Algo está me bloqueando, não me culpe.
— Nesse ritmo vamos ter que recomeçar apenas amanhã. Estamos perto demais pra recuar agora, irmã, faça um esforço.
As pernas de Janaína eram longas, seus passos eram largos e sua altura não pareciam um atrapalho quando cortava o vento como uma flecha. Havia algo de incomum no modo como ela se movia nos últimos meses, os animais sempre se encolhiam ao vê-la passar. Moacir sempre lançava um olhar cauteloso quando a irmã demonstrava algo diferente, como um apetite irregular ou mudanças repentinas de humor. Preocupava-se com no que ela poderia estar, aos poucos, se transformando. Os pajés se recusavam a vê-la, e isso estava longe de significar alguma coisa boa.
— O que acha que tenho feito pelas últimas semanas? — E com essa resposta, a conversa silenciou.
Estavam rastreando há horas a fio, e até o momento não haviam encontrado o que procuravam. Moacir estava a ponto de diminuir a velocidade e abrir a boca para dizer algo quando Janaína ergueu a mão, em silêncio. Ela sinalizou como da última vez quando se preparavam para cercar uma caça, e evitando pisar em folhas secas ou galhos caídos para não fazer barulho, os irmãos deslizaram até a parte de trás de uma moita, de onde espiaram o que tinha no horizonte. Haviam encontrado uma cidade, logo ao pé da declinação que se prosseguia de onde se encolhiam. Não faziam ideia de onde poderiam estar, a placa que anunciava as boas-vindas a quem chegava ao local estava longe demais para que pudessem ler o nome, mas os olhos de Janaína faiscavam como se estivessem prestes a explodirem. Moacir olhou para ela, a descrença tinha dado lugar a uma excitação que fez-lhe o coração palpitar mais forte.
— Encontramos? — Moacir perguntou.
— Encontramos. — Depois de uma expiração de satisfação, ela respondeu.
Moacir depositou as mãos cheias de calo sobre os ombros largos da irmã, virando-a para si. O rosto pintado escondia boa parte de seus traços, mas não podia apagar o brilho nos olhos que refletia o rosto iluminado de Janaína.
— Nós nos preparamos para esse momento, vamos conseguir, tá me ouvindo? Não se preocupe em machucar ninguém, eu vou estar aqui para cobrir você. Lembre-se: Tudo o que precisa fazer é nos levar até ele, nada mais.
— E se tudo der errado você vai se preocupar primeiro em me domar.
O mais velho ficou em silêncio.
— E se tudo der errado você vai se preocupar primeiro em me domar, CERTO?
Janaína já estava agitada, mas primeiro precisava ter certeza de que não faria mal a ninguém. Os irmãos tinham dedicado os últimos dois anos pra se prepararem para aquele momento, e ainda se expuseram em cinco luas cheias pra finalmente chegarem ao lugar onde tudo seria decidido. O dedos das mãos e pés dos dois juntos não seriam suficientes para enumerar os meios e razões pelos quais aquilo poderia não ocorrer bem, e por isso era necessário agirem com muita cautela. Cautela essa que, mesmo já tendo sido discutida várias vezes, Janaína temia que Moacir pudesse não ter. Estavam ambos cansados daquela caçada, mas não poderia colocar o sucesso acima do bem estar de pessoas que nada tinham a ver com a história.
— Vamos fazer isso. — Depois de muito tempo em silêncio, Moacir assentiu. A flecha que estava armada foi guardada na aljava que levava nas costas, e após tatear as flechas reservas, selecionou a que tinha a ponta extremamente fina, mais grossa que uma agulha apenas poucos milímetros. Fez isso em uma questão de segundos, enquanto posicionava um pé na frente, com o joelho dobrado, e se sentava na ponta do calcanhar do pé de trás, voltando-se para a direção da cidade. — Quando estiver pronta.
Janaína se levantou por completo, mostrando o porte magro e levemente atlético, comum às garotas de vinte anos de sua aldeia. Respirou fundo. Pesou as pálpebras. Deixou que seus instintos a tomassem e a eletricidade em seus olhos se espalhassem por todo o corpo. Um fogaréu dançou na base do pescoço dela, e quando olhou para os céus, num pedido silencioso de misericórdia, o fogo consumiu por completo o rosto doce. O vermelho de suas pinturas se confundiram com os tons das chamas. Ela se jogou por cima do arbusto, e antes que pudesse tocar o chão o corpo se curvou e se transformou em um tronco quadrúpede, alto, fazendo jus à primeira forma. Os — agora — cascos da recém transformada tocaram o chão da ladeira com força o suficiente para derrubar quem estivesse próximo, mas sozinha, descendo em direção à cidade na velocidade de um trem, Janaína mais parecia o augúrio de um deslizamento. Tal pensamento ocorreu a Moacir ao ver a irmã partir em disparada.
— Que os deuses nos acompanhe, e que não permitam que ela seja a catástrofe desse povo.
Logo se prontificou a segui-la, despontando atrás da quadrúpede com a leveza de estar sendo levada por uma corrente de ar. O arco de Moacir estava novamente armado, mas desta vez, mirava a traseira de Janaína.
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Os Caminhos da Terra - Manoa
FantasyO legado de Pindorama ainda resiste pelo denso território brasileiro, oculto dos homens brancos e imerso em seu próprio mundo de mistério e magia. Em cada gesto e em cada olhar é possível ver o sopro das Cis, que leva vida aos seres habitantes dessa...