10 horas antes do embarque

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Olho para as minhas malas abertas em cima do colchão inflável que venho dormindo nos últimos quatro dias. Ainda não consigo decidir se estou levando roupa demais ou de menos. A qualquer momento meu irmão chegará aqui para recolher o pouquinho de coisas que ainda resta no meu apartamento e a corretora de imóveis virá fazer a verificação e pegar as chaves.

Então isso é verdade. Estou mesmo indo embora do Brasil para a Inglaterra.

Resolvo que vou tirar das bagagens todas as minhas roupas de verão, já que pelo o que eu ouvi falar elas não terão a menor utilidade no continente europeu. Mas sei que se eu fizer isso vou levar pelo menos mais uma hora para reorganizar tudo e eu não disponho desse tempo. Respiro profundamente em uma tentativa de não me irritar tanto comigo mesma. O que é que eu tenho de errado, meu Deus? Eu deveria estar feliz e saltitante. Tenho um visto de trabalho que me permitirá ganhar em libras ao invés de reais, além de ter uma vaga de correspondente me esperando na terra da Rainha! Qual é o meu problema? Quantas pessoas não dariam tudo para estar no meu lugar neste exato momento e eu tô aqui cheia de caraminholas na cabeça.

Direciono o meu olhar para o meu celular jogado no chão. Se todos os meus móveis ainda estivessem aqui, ele estaria em cima da minha mesinha de cabeceira, e não sei por qual motivo essa constatação dá um nó na minha garganta. Começo a sentir uma saudade irracional daquela mesinha de cabeceira, que comprei na Ricardo Eletro mas parecia ser de uma marca chique. Ela será bem utilizada por quem a comprou no Garage Sale que fiz para me desfazer das minhas coisas? E se por acaso utilizarem a minha amada mesinha para guardar artigos religiosos? Ela era a morada de um vibrador caro além de alguns tubos de KY. O que eu posso fazer? Fui solteira por muito tempo. Eu deveria ter avisado ao novo proprietário da mesinha que ela não foi feita para itens santos?

Tento desviar minha atenção daquele aparelho telefônico jogado no chão. Mas parece que uma força magnética maior que eu me atrai ali. Por mais que eu ordene ao meu corpo se preocupar apenas em fechar as malas e esquecer o celular, ele reage da forma completamente oposta e me leva em direção ao telefone. Me abaixo e começo a verificar telefonemas, watssapp, mensagens de texto. Nada dele... Meu peito dói como se tivessem me enfiado uma faca (e revirado ela por pelo menos umas dez vezes).

Volto para as malas. Posso despachar duas e levar uma de mão. Onde já se viu começar uma vida nova com apenas três bagagens? Isso não é nada justo! Encaixo os quatro pares de havaianas novas que comprei para levar. Me falaram que isso é muito caro no exterior, e francamente, não sei viver sem chinelos.

Toca o interfone. É meu irmão. Rapidamente ele sobe as escadas e chega ao meu apartamento.

— Oi, Rê! Onde estão as tranqueiras que eu tenho que levar? — como sempre ele está vestido camisetas com desenhos de Shiva e afins, além de estar com um cheiro leve de erva do demônio e o olhar meio baixo.

— Robson! — me agarro em meu irmão e começo a chorar. Ele é o meu melhor amigo, será a única pessoa que eu deixarei me ver derrubar lágrimas inconvenientes! Me dou essa ordem mental e não pretendo descumpri-la.

— Você sabe que não é obrigada a ir, né? — ele afaga minha cabeça carinhosamente.

— Sim... Mas não posso abrir mão da minha carreira por... — não tenho coragem de terminar a frase. Se ela ficar apenas na minha cabeça a coisa parece menos feia do que realmente é.

— Por?

— Por um homem que eu mal conheço — um jorro de lágrimas percorre a minha face e desmonta a minha rasa confiança.

Um doce de confeiteiro  - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora