I
Mirela: Meu Jesuscristinho, eu vi tudo. Eu estava no banheiro da casa de Peu quando começou o tiroteio. Eu tinha acabado de apagar a luz do banheiro e por pouco não abri a porta de vez e dei de cara com aquilo tudo. Eu ia abrindo, e abri, quer dizer, meio que abri, e dali eu vi tudo, meu Deus. Foi o Senhor que me colocou naquele banheiro, exato naquela hora. Eu nem estava com tanta vontade de ir lá, mas parece que tinha que ser para eu ir no banheiro naquela hora, exatinho quando os homens apareceram e mataram Peu, Dinho e Sandrinha também, meu Jesuscristinho.
Mãe: Que horror, meu Deus, que horror, minha filha, venha cá, me abrace.
Mirela: Um horror, mamãe. Meu coração disparou, eu nem sabia bem o que fazia, fiquei ali parada, me tremendo toda, meu corpo inteirinho tremia. Eu vi, mamãe, eu vi quando o homem passou por cima do corpo de Peu. Ele não sentia nada, nadinha, mamãe, ele estava era satisfeito. Não deu para ver o outro homem direito, mas o que eu vi era gordo e grande. E eu morri de medo, mamãe, de ele vi para o meu lado, fazer xixi ou cocô no banheiro, aí eu estava frita, mamãe. A senhora não pode imaginar o que eu senti, mamãe, eu me urinei toda ali mesmo enquanto olhava pela brecha da porta o que eu via, mamãe.
Mãe: Calma, minha filha, já passou, se acalme. Não precisa mais ter medo, eu estou aqui do seu lado, passou, passou, passou...
Mirela: Eu vi, mamãe, eu vi quando o homem cortou a cabeça de Peu. Era muito sangue, mamãe, muito, muito sangue, espalhado por todo lado. Era tudo, tudo muito feio, mamãe, aquelas coisas todas saindo pelo pescoço. Deus me livre ver aquilo outra vez, mamãe, mamãe, esse lugar, esse lugar...
Mãe: Meu amor, minha filha, foi Deus quem te protegeu. Obrigada, meu Deus.
A rua das Tabocas, em Peixinhos, Olinda, ficou cheia de curiosos para ver o sangueiro na casa de Peu, os corpos de Peu e Dinho degolados, o corpo pequenino da filha de Peu, as paredes manchadas de sangue, as marcas de pneu deixadas na rua. Houve quem passou mal ao ver as entranhas dos irmãos abertas no pescoço, a menina de seus dez anos também morta, as marcas de bala nos corpos e nos móveis, o sangue descendo pela porta da rua, mais sangue que jorrou a manchar o sofá e o centrinho derrubado no meio da sala.
Durante a madrugada as cabeças de Peu e Dinho foram deixadas em frente à casa da própria mãe, em Aguazinha. Dona Severina quase morreu quando foi avisada, de manhã bem cedo, que as cabeças dos seus dois filhos estavam justo na frente da sua casa. Dorinha, a vizinha do lado, ao ver a desgraça feita, bateu na porta traseira da casa de Dona Severina. Tremia todo o seu corpo e chorava com os olhos se desmanchando em lágrimas.
Dorinha: Se prepare, minha amiga, se prepare porque o que fizeram com seus filhos não se faz com um cachorro.
Dona Severina caiu na cadeira da pequena cozinha já tendo a certeza de que havia perdido seus dois filhos por morte matada, aquilo que ela sempre temeu. Mas quando Dorinha falou que haviam matado e colocado a cabeça dos seus meninos na porta da frente da sua casa, agarrou-se a ela um soluço que descia pelo corpo inteiro, não tinha como controlar, não tinha chá-do-que-fosse que desse jeito. Os vizinhos Manoel e Joaquim saíram com ela nos braços pela porta dos fundos do seu casebre e tiveram que fazer um caminho mais longo para não passarem pela frente da casa, onde as cabeças ainda se encontravam. Ninguém tinha coragem de chegar perto para vê-las, as veias misturadas a areia, os olhos esbugalhados de Peu, os lábios roxos e um líquido branco saindo pela boca de Dinho.
Quando o IML chegou, horas depois do aviso pelos vizinhos, alguns cachorros haviam feito mais estragos nas cabeças dos irmãos. Um olho havia sido arrancado, os lábios comidos, as orelhas mutiladas. Uma das cabeças já se encontrava mais colocada ao meio da rua, enquanto o cachorro mais feroz foi espantado com um pedaço de pau por um homem que vivia nas proximidades. Colocaram dois panos por sobre as cabeças, que foram levados juntos com elas pelos agentes do IML.
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Eu vi Santiago Fumegante
General FictionDois contos completos. Eu vi, que também poderia se chamar Os olhos de Mirela, uma história de violência que se passa na periferia do Recife; e Santiago Fumegante, uma história leve ambientada em Santiago, Chile.