"Se acorda mil vezes, dormirás mil e uma. "
— Foi um sonho, Lizabeth. Foi um sonho. — A garota se sentou na cama, arfando, a voz ainda ecoando na cabeça. Só poderia ser um sonho.
Uma gargalhada nervosa se apoderou de sua boca, uma satisfação tomou seu peito ao inspirar fundo o ar fresco da manhã. Levantou-se, esticou os braços em um preguiçoso alongamento e virou-se para a mesa de cabeceira. O relógio antigo mostrava três números iguais: 6:66. Seus olhos piscaram, em desespero, e ela os esfregou, como se o gesto pudesse mudar algo. Mas no fim, mudara:
"sete e seis da manhã."
Tentou afastar os pensamentos um tanto estranhos que pareceram tomar conta de sua mente ao notar a coincidência de que sete horas e seis minutos seria o equivalente de 6:66. Lizabeth voltou a seguir sua rotina com tanta inércia que só notou a coincidência com seu sonho ao receber uma mensagem de Melinda para se encontrarem no centro da cidade.
Mesmo horário. Mesmo texto. Mesma coisa, tudo de novo.
Dividida pela intrigante coincidência e pelo ceticismo crescente que lhe surgira naquela manhã, Lizabeth se arrumou mais rápido, cortou tarefas e entrou no carro vinte minutos antes do que no sonho.
"Pronto, estou segura. Se foi um presságio, o tal efeito borboleta vai cuidar disso".
Decidiu trocar de caminho, mas todas as saídas que poderiam lhe permitir fazer isso estavam interditadas, fechadas ou bloqueadas de alguma forma, mas quando chegou ao túnel, ele estava vazio. Passou tranquilamente pela parte onde parara em sua alucinação e respirou aliviada.
"Viu, idiota? Sabia que era um sonho. "
Fechou os olhos rapidamente em uma risada aliviada, mas quando abriu-os notou uma garota no meio da pista. Uma garota exatamente igual a ela.
Um giro agressivo no volante fez o sedã rodopiar e acertar com força a parede do túnel. O impacto fez o concreto adquirir rachaduras fundas, enquanto ela tentava em desespero ligar o carro.
— O carro não vai pegar, Lizzie.
Lizabeth empalideceu em choque, mas se permitiu o controle de não berrar. As pessoas dos outros carros buzinavam e tentavam dar a ré para sair do túnel: em pouco tempo deixariam tudo para trás. Ela, no entanto, só tinha olhos para a ocupante do banco do passageiro, que surgira ali em um brilho assustador.
— Melinda? Como...?
— Eu vim te buscar, Lizzie. Estou tentando há tempos te mostrar, e você finalmente está...
— Você está me assustando, como você veio parar aqui?
— A trazemos de volta até que você entenda...
— É sério! Eu estou... precisamos sair daqui!
— Preste atenção, Lizabeth, eu estou tentando te ajudar. — Melinda aumentou o tom de voz, impaciente. — Vocês dois estão fadados a este destino, ainda que voltem sempre para este mundo, vão desencarnar neste mesmo dia, da mesma forma. A menos que cedam e percebam. E acho que já é a sua hora de entender.
— Vocês dois?
— Seu pai fez um pacto conosco e sacrificou a sua vida e a de seu irmão para reviver sua mãe. Vocês não se conhecem, não tem memórias, só estão fadados a reviver o mesmo dia, o terrível acidente pelo qual sua mãe passou, em troca da vida eterna para seus pais. Ou você causa o acidente, ou ele causa.
— Melinda, ou seja lá qual for o seu maldito nome. Você errou a pessoa, eu sou filha única, órfã. Moro sozinha desde que eu me lembro e...
— Notou que não se lembra de nada? — O sorriso de escárnio no rosto de Melinda a assustou, mas ela não se deixou ceder pelo medo. — Não importa o que você faça, ou a forma que você tente alterar seu destino: não existe efeito borboleta para nós. É o preço, sabe.
— Isso significa... que eu vou morrer? Que... Melinda, eu não consigo me lembrar de nada da minha vida, só meus sonhos em todo sábado de manhã. O mesmo sábado!
— Não, criança. Você não vai morrer. — Um sorriso de escárnio irrompeu da face de Melinda, a pele jovem dando lugar à textura macilenta e enrugada de uma idosa. — Nós nunca morremos. Servimos à um propósito maior. É um preço alto a se pagar pelo amor alheio.
— O que está acontecendo? — Lizabeth grudou na porta do carro, tentando se afastar dela. Melinda voltou a ter a mesma cútis perfeita em questão de segundos.
— Eu sou eterna. Você será eterna também, se juntar-se à nós, é disso que estou falando. Eu estaria encrencada se não soubesse do que você é capaz, mas você percebeu, Lizzie, você tentou sair.
— Eu não estou entendendo, seja lá o que você for.
— Deixe-me tentar explicar. Somos parte de algo maior, entende, e quero que você se entregue. É uma vida dura, a que temos, mas é melhor vigiar o barco do que estar nele eternamente, sem poder pagar por ele. Não há nada que você possa fazer.
— E se... E se eu me negar a ir neste lugar que você está falando?
— Sua vida será assim eternamente. Não vai terminar, Lizabeth. Estou aqui para te convencer de que você deve se entregar. Você é mais forte do que seu irmão, ele já está devastado. Acha que está enlouquecendo e ele se mata toda manhã. Um sofrimento eterno.
— E você está me dizendo que...
–– Que você não tem escolha. A fuga só te faz voltar para o mesmo lugar. Todas as vezes no seu subconsciente você está fugindo.
E então ela entendeu. A voz que sempre a acordava do sono.
"Se acorda mil vezes, dormes mil e uma. "
— E-eu... vou ficar bem?
–– Venha. — Melinda a abraçou como uma mãe abraça a filha, e a parede de concreto à frente delas arrebentou, cobrindo o carro de água.
A onda gelada transformou-se nas chamas do eterno purgatório e Lizabeth dormiu pela última vez, transformando-se em energia: uma energia direcionada a ajudar a travessia dos desencarnados, para fazer cumprir as profecias, tal como Melinda fazia, e como quem a trouxera antes também havia feito, e todos antes delas.
Lizabeth tomou seu posto no rio de fogo, pagando pelos pecados dos pagãos que por séculos dizimaram as ordens naturais do mundo para saciar seus desejos provincianos. Sentou-se em seu figurado lugar de madeira, o barqueiro que analisava todo o sofrimento que quem não pagava a travessia, e que levava em segurança para os domínios do submundo.
Lizabeth se tornou Caronte.

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Lizabeth
Paranormal"Se acorda mil vezes, dormes mil e uma" Um sábado que dura eternamente. Um medo indecifrável de água. Uma lembrança assustadora. Lizabeth vive todos os seus dias em um looping, mas ela tem uma decisão a tomar. Ela só precisa descobrir qual é antes...