Água

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"Se acorda mil vezes, dormirás mil e uma. "

Lizabeth acordou de súbito, acompanhada de uma febre enlouquecedora e os lençóis molhados de suor. O relógio digital que jazia no criado-mudo desgastado de madeira apitava o mesmo horário de sempre: 07:06 da manhã de um ensolarado sábado.

Chacoalhou a cabeça, confusa em pensamentos, que julgava uma confusão por estar recém-desperta.

"Mas ontem era sábado. Não era?"

Se viu seca, em seus pijamas de algodão, e tudo estava normal. Normal demais, como todos os dias de sua vida. Não era a primeira vez em que acordava como se não soubesse onde estava, mas no fim, sempre estava ali, em sua cama, levantando às sete e seis da manhã. O que havia feito ontem? E uma semana atrás? Um mês, um ano? Sentia-se sufocada em sua própria mente, como se, no fundo, ela não conseguisse sair de onde estava. 

"Você acabou de acordar, é isso. Está confusa, mas tudo está normal."

Tudo, a não ser pelo sonho. Aquele sonho horrendo, congelante, perturbador: um turbilhão de água que enchia seus pulmões, como um looping infinito, um filme sem fim. 

E ela sonhara com ele de novo.

Lizabeth chacoalhou os cabelos longos e embaraçados, pulando da cama, agitada. Talvez fosse a hora dela procurar um tratamento: só poderia estar enlouquecendo. Aquelas sensações de estar sempre no mesmo lugar eram tão incoerentes que mal podia acreditar serem reais. 

"Talvez eu esteja presa em um sonho."

Seguiu a mesma rotina: um banho rápido, o qual lhe deixou curiosamente desconfortável, correu até a padaria da esquina para comprar um pão doce, assistiu um ou dois episódios de um seriado qualquer, estranhamente familiares, o que a fez se perguntar se já não havia assistido a eles antes.

Um dejà-vu constante, incrivelmente fiel a algo que ela não fazia ideia do que se tratava.

E então recebeu uma mensagem de uma amiga, Melinda, para se encontrarem em um bar no centro da cidade. Seu cérebro se acendeu como uma árvore de natal, e imagens da mulher de cabelos louros sedosos e brilhantes, corpo esguio dotado de curvas delicadas, sorriso hipnotizante e olhar profundo apareceu em sua mente.  Melinda era seu ícone de inspiração: pelo que enxergava em seus estalos de consciência, Mel era uma amiga popular em todo local que iam, do tipo de mulher rica e bonita que poderia ter tudo o que quisesse em suas mãos. 

Em uma corrida contra o tempo, se arrumou em uma animação surpreendente: seus sonhos intrigantes com água e a sombra de um casal confundiam seus sentidos, deixavam-na atordoada, mas a sensação de confusão daquela manhã parecia ter desaparecido. Como um choque, seu âmago pareceu mais vivo, tudo lhe pareceu mágico, tão feliz que ela se permitiu ignorar qualquer outra suspeita.

Entrou no carro e dirigiu em alta velocidade pela avenida expressa que a levaria direto para o centro. Faltando poucos quilômetros, um conglomerado de carros se reuniu em um túnel subterrâneo, principal via de acesso da cidade, encurralando Lizabeth em um inevitável congestionamento. As luzes dos carros piscando lhe deram dor de cabeça e o carro começou a ficar pequeno demais, fazendo-a abrir as janelas em desespero.

Um barulho alto de algo grande se partindo ecoou no túnel lotado e ela viu pessoas correndo em sua direção, aos berros.

"O túnel cedeu, o túnel cedeu! ".

Lizabeth começou a se debater para sair do carro, mas o cinto de segurança estava travado como se o carro tivesse sofrido um impacto, e o botão não funcionava. Os olhos escuros se arregalaram quando ela notou que uma gigantesca onda vinha em sua direção, rápida e certeira. O rio que passava pelo túnel o tomava naquele momento, levando os carros como se fossem pequenos ornamentos de papel.

Sua garganta colapsou como em uma crise alérgica, a traqueia fechada impedindo a mínima passagem de ar, e seus lábios cada vez mais cianóticos abriam-se em pavor como um peixe fora d'água. Não conseguia se mover, respirar, falar, apenas observar o fim que a atingiria muito em breve.

Em meio a estilhaços, a onda a atingiu: o pânico hidrofóbico unido ao afogamento evidente fez com que aqueles últimos dois minutos de vida se transformassem em horas e horas de desespero, até que em um grande suspiro ela abriu os olhos.

Estava de volta à sua cama, às sete horas e seis minutos da manhã de sábado.

LizabethOnde histórias criam vida. Descubra agora