Q U A T R O O Poder do Contexto (parte um):

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  B E R N I E G O E T Z E A ASCENSÃOE Q U E D A D O C R I M E E M N O V A Y O R K  

  No dia 22 de dezembro de 1984, no sábado antes do Natal, Bernhard Goetzdeixou o seu apartamento em Greenwich Village, em Manhattan, e caminhou atéa entrada do metrô na esquina da Rua 14 com a Sétima Avenida.l Era umhomem esguio, de quase 40 anos, cabelos claros, de óculos. Naquele dia usavacalça jeans e blusão. No metrô, pegou o expresso número dois para o centro dacidade e se sentou ao lado de quatro jovens negros. Havia cerca de 20 pessoas novagão, mas quase todas elas sentadas na outra ponta, evitando os quatro rapazesporque eles estavam, segundo os relatos posteriores de testemunhas, "fazendoconfusão", "provocando arruaça". Goetz pareceu não perceber. "Tudo bem,tio?", um deles, Troy Canty, perguntou a Goetz quando ele entrou. Canty estavadeitado quase de bruços num dos bancos. Ele e um dos outros rapazes, BarryAllen, chegaram perto de Goetz e lhe pediram US$5. Um terceiro, JamesRamseur, fez um gesto mostrando um volume suspeito no bolso, como se tivesseuma arma.– O que vocês querem? – perguntou Goetz.– Passa US$5 – repetiu Canty.Goetz olhou para cima e, como disse mais tarde, viu que "os olhos de Cantyestavam brilhando, ele estava se divertindo com a história... tinha um sorrisoenorme no rosto". De alguma maneira, aquele sorriso e aquele olhar oenfureceram. Goetz colocou a mão no bolso e tirou uma Smith and Wessoncalibre 38, cromada, de cinco tiros, e disparou nos garotos, um a um. Quando oquarto, Darrell Cabey, caiu estirado no chão gritando, Goetz se aproximou dele edisse: "Você está bem. Aqui vai outra", antes de disparar a quinta bala, que sealojou na coluna de Cabey , deixando-o paralítico para sempre.No tumulto, alguém puxou o freio de emergência. Os outros passageiroscorreram para o vagão seguinte, exceto duas mulheres que o pânico deixaraparalisadas. "Tudo bem com você?", Goetz perguntou a uma delas. Elarespondeu que sim. A outra estava deitada no chão. Fingia-se de morta. "Vocêestá bem?", ele perguntou, duas vezes. Ela fez um gesto afirmativo com acabeça. O condutor, agora em cena, perguntou a Goetz se ele era da polícia."Não, não sei por que fiz isso." E depois de algum tempo: "Eles tentaramme limpar."O condutor pediu a Goetz que lhe desse a arma. Ele se recusou. Cruzou aporta na parte da frente do vagão, soltou a corrente de segurança e pulou para ostrilhos, desaparecendo na escuridão do túnel.Naquela semana, os disparos no metrô causaram comoção nacional. Osquatro rapazes tinham ficha na polícia. Cabey já fora preso por assalto à mãoarmada, Canty por roubo. Três deles levavam chaves de fenda nos bolsos.Pareciam personificar o tipo de jovem assassino temido por quase todos oshabitantes das cidades, e o misterioso atirador que os alvejara era um anjovingador. Os tablóides começaram a chamar Goetz de "Vigilante do Metrô" e"Atirador Suicida". Nos programas de rádio e nas ruas, ele era tratado comoherói, o homem que realizara a fantasia de todo nova-iorquino que já tinha sidoagredido, intimidado ou assaltado no metrô. Na véspera do Ano-Novo, umasemana depois do confronto, Goetz se entregou à polícia, na delegacia de NewHampshire. Quando ele foi transferido para a cidade de Nova York, o jornal NewYork Post publicou duas fotografias na primeira página: uma dele, algemado e decabeça baixa, sendo levado preso, e outra de Troy Canty – negro, desafiador, osolhos sob uma tarja preta, braços cruzados – saindo livre do hospital. A manchetedizia: "Algemado enquanto Delinqüente Ferido Fica em Liberdade." Nojulgamento, Goetz foi absolvido com a maior facilidade das acusações deagressão e tentativa de homicídio. Na noite do veredicto, houve uma festaimprovisada e bastante barulhenta em frente ao seu prédio.1.O caso Goetz se tornou símbolo de uma época sombria da história de Nova York,quando os crimes ali se transformaram num problema de proporçõesepidêmicas. Durante a década de 1980, a cidade atingiu uma média anualsuperior a 2 mil assassinatos e 600 mil crimes graves. Nos espaços subterrâneos,no metrô, as condições só podiam ser descritas como caóticas. Antes de BernieGoetz entrar no expresso número dois naquele dia, ele deve ter aguardado numaplataforma mal iluminada, cercado por paredes escuras, úmidas e pichadas. Éprovável que o trem tenha demorado porque em 1984 havia um incêndio por diano sistema metroviário de Nova York e um descarrilamento a cada duassemanas. Fotografias da cena do crime tiradas pela polícia mostram que o vagãoem que Goetz viajara era nojento, o chão coberto de lixo e as paredes e o tetoimundos de pichação. Entretanto, isso não era novidade. Naquele ano, os 6 milvagões da Transit Authority, com exceção do trem que circula na região centralde Manhattan, eram pichados – de cima a baixo, por dentro e por fora. Noinverno, esses carros eram frios − poucos deles tinham aquecimento adequado.No verão, o calor era sufocante porque não havia ar-condicionado. Hoje, oexpresso número dois passa acelerado, a mais de 60km por hora em direção àparada expressa da Chambers Street. Mas duvido que o trem de Goetz fosseassim tão rápido. Em 1984, havia 500 áreas do metrô com "tarja vermelha" –locais onde danos nos trilhos ameaçavam a segurança das composições quepassassem por ali a mais de 25km por hora. O calote na bilheteria era tão comumque estava dando à Transit Authority um prejuízo de US$150 milhões por ano.Ocorriam cerca de 15 mil delitos anuais graves no sistema metroviário – númeroque chegaria a 20 mil por ano no fim da década. Além disso, o assédio depedintes e pequenos criminosos era tão habitual que a freqüência dos usuárioscaiu ao nível mais baixo da história daquele serviço de transporte. WilliamBratton, que mais tarde seria uma figura essencial para o sucesso da luta de NovaYork contra os crimes violentos, conta, na sua autobiografia, que era usuário dometrô dessa cidade na década de 1980, depois de ter morado em Boston duranteanos, e ficava atônito com o que via:2Depois de esperar numa fila aparentementeinfindável para comprar uma ficha, tentei inseriruma moeda numa roleta e vi que ela havia sidobloqueada de propósito. Impossibilitados de pagarpara entrar no metrô, tínhamos que passar por umportão que uma figura de aparência desgrenhadamantinha aberto, deixando a mão esticada – depoisde avariar a roleta, ele agora exigia que as pessoaslhes dessem as fichas. Enquanto isso, um dos seuscolegas chupava as moe- das presas nas ranhuras,deixando tudo babado. A maioria das pessoasestava intimidada demais para se revoltar: "Aqui,toma a ficha. Que me importa?" Outros cidadãospassavam por cima, por baixo, davam a volta ou seenfiavam pela roleta, entrando de graça. Pareciauma versão do Inferno, de Dante, no transportepúblico.Assim era Nova York na década de 1980, uma cidade nas garras da piorepidemia de crimes da sua história. No entanto, de repente e sem aviso, aepidemia deu uma guinada. Do seu ponto mais alto, em 1990, o índice decriminalidade entrou em vertiginoso declínio. A quantidade de assassinatos caiuem dois terços. O número de delitos graves diminuiu 50%. Outras cidades viramsua taxa de crimes se reduzir no mesmo período. Mas em nenhum lugar o nívelde violência baixou tanto e tão rápido quanto em Nova York. No fim dos anos1990, a ocorrência de ilícitos penais graves nas estações de metrô era 75%menor do que no início da década. Em 1996, quando Goetz foi a julgamento pelasegunda vez, agora como réu num processo civil movido por Darrell Cabey, ocaso foi ignorado pela imprensa e a própria figura de Goetz parecia quaseanacrônica. Numa época em que Nova York se tornara a metrópole mais segurado país, era difícil lembrar exatamente o que Goetz um dia simbolizara. Erainconcebível que uma pessoa puxasse uma arma para atirar em alguém nometrô e ainda fosse chamada de herói por isso.2.Essa idéia do crime como epidemia, devo dizer, é um tanto estranha. Falamos de"epidemia de violência" e de ondas de crimes, contudo não está claro se, de fato,acreditamos que os delitos sigam as mesmas regras das epidemias comoaconteceu, por exemplo, com os Hush Puppies e a cavalgada de Paul Revere.Aquelas epidemias envolveram elementos de certa forma objetivos e simples –um produto e uma mensagem. O crime, por sua vez, não é algo único e isolado –sua denominação serve para descrever um conjunto imensamente variado ecomplexo de comportamentos. Atos criminosos têm graves conseqüências. Elesexigem que o delinqüente execute uma ação que o coloca em grande riscopessoal. Dizer que uma pessoa é criminosa é o mesmo que chamá-la de nociva,violenta, perigosa, desonesta, instável ou uma combinação qualquer de algumasdessas características – nenhuma delas é um estado psicológico que possa sertransmitido de modo casual de um indivíduo para outro. Em outras palavras, oscriminosos não parecem ser o tipo de gente propensa a ser arrebatada pelos arescontagiantes de uma epidemia. Mas, de certa forma, foi isso que aconteceu emNova York. Do início a meados da década de 1990, a cidade não recebeunenhum transplante de população. Ninguém saiu às ruas e conseguiu ensinar acada futuro bandido a diferença entre certo e errado. No auge da onda de crimese em seu ponto mais baixo, continuavam vivendo ali as mesmas pessoas comproblemas psicológicos e tendências criminosas. No entanto, por alguma razão,milhares delas deixaram, de repente, de cometer delitos. Em 1984, um confrontono metrô entre um usuário irritado e quatro jovens negros resultou emderramamento de sangue. Hoje, nas estações do metrô de Nova York, umasituação desse tipo não termina mais em violência. Como isso aconteceu?A resposta está no terceiro princípio da transmissão epidêmica, o Poder doContexto. No capítulo sobre a Regra dos Eleitos você leu sobre os tipos de pessoasque são essenciais para a divulgação de informações. No capítulo sobre VilaSésamo e As pistas de Blue abordei a questão da fixação, sugerindo que, paraconseguir deflagrar uma epidemia, as idéias precisam ter a capacidade de semanter em nossa memória e nos fazer agir. Vimos indivíduos que espalhamidéias, assim como vimos as características das idéias bem-sucedidas. Contudo, oassunto deste capítulo – o Poder do Contexto – não é menos importante do que osdois primeiros. As epidemias são sensíveis às condições e circunstâncias dotempo e do lugar em que ocorrem. Em Baltimore, a sífilis se alastra muito maisno verão do que no inverno. Os Hush Puppies se tornaram um sucesso porqueestavam sendo usados pela garotada no circuito mais avançado de East Village –ambiente que fez com que outras pessoas passassem a ter uma nova visão dessessapatos. Seria possível até dizer que, de certa forma, a cavalgada de Paul Revereteve êxito porque ocorreu à noite. Nessa hora, as pessoas estão em casadormindo, o que torna muito mais fácil encontrá-las do que se estivessemrealizando alguma tarefa na rua ou trabalhando no campo. E, se alguém nosacorda para dizer algo, supomos de modo automático que seja urgente. Podemosimaginar como teria sido a "Cavalgada de Paul Revere à Tarde".De certa maneira, isso é fácil de entender. Mas o que aprendemos com oPoder do Contexto é que não somos apenas sensíveis às mudanças de contexto.Somos extremamente sensíveis a elas. E os tipos de alterações contextuaiscapazes de deflagrar uma epidemia são bem diferentes do que costumamossuspeitar.3.Durante a década de 1990, o número de crimes violentos nos Estados Unidosdiminuiu em todo o território nacional por motivos compreensíveis. O comércioilegal de crack, responsável por grande parte da violência entre gangues etraficantes, entrou em declínio. A expressiva recuperação da economia fez comque muita gente que teria seguido o caminho da delinqüência estivesseempregada honestamente. Além disso, com o envelhecimento geral dapopulação, havia menos pessoas na faixa etária – homens entre 18 e 24 anos –que praticava a maioria dos atos de violência. Saber por que o índice decriminalidade caiu na cidade de Nova York, entretanto, é um pouco maiscomplicado. No período em que a epidemia de violência na cidade atingiu oPonto da Virada, a situação econômica local ainda não havia melhorado.Continuava estagnada. Na verdade, os bairros mais pobres tinham sido atingidospelos cortes na área de bem-estar social ocorridos no início da década de 1990. Oenfraquecimento da epidemia de crack em Nova York foi um fator genuíno,porém, mais uma vez, isso vinha acontecendo de forma constante muito antes daqueda do índice de criminalidade. Quanto ao envelhecimento da população: porcausa da intensa imigração para Nova York na década de 1980, a cidade estavaficando mais jovem, e não mais velha, nos anos 1990. De qualquer maneira,todas essas tendências representaram mudanças a longo prazo cujos efeitosgraduais eram previsíveis. Em Nova York, o declínio foi tudo, menos paulatino.Algo mais teve um claro papel na inversão da epidemia de crimes nessa cidade.3O candidato mais intrigante a esse "algo mais" chama-se teoria das janelasquebradas. Ela é fruto da imaginação dos criminologistas James Q. Wilson eGeorge Kelling. Os dois argumentaram que o crime é o resultado inevitável dadesordem. Se uma janela está quebrada e não é consertada, quem passa por aliconclui que ninguém se importa com aquilo e que não há ninguém no controle.Em breve, outras janelas aparecerão quebradas, e a sensação de anarquia seespalhará do prédio para a rua, enviando a mensagem de que ali vale tudo.Segundo Wilson e Kelling, em uma cidade, problemas relativamenteinsignificantes, como pichação, desordem em locais públicos e mendicânciaagressiva, são o equivalente das janelas quebradas − convites para crimes maisgraves.Assaltantes e ladrões, sejam oportunistas ouprofissionais, acham que suas chances de serempresos ou até identificados diminuem se atuaremem ruas onde as vítimas em potencial já estãointimidadas pelas condições reinantes. Talvez oladrão pense que, se a vizinhança não é capaz deevitar que um pedinte incomode as pessoas nasruas, é menos provável ainda que chame a políciapara identificar um possível assaltante ou interferirse a agressão realmente acontecer.4Essa é uma teoria epidêmica do crime. Ela diz que o crime é contagiante –assim como uma tendência da moda – e pode começar com uma janelaquebrada e se espalhar por toda a comunidade. O Ponto da Virada nessaepidemia, entretanto, não está em determinado tipo de pessoa – umaComunicadora como Lois Weisberg ou um Expert como Mark Alpert. Está emalgo físico, como as pichações. O ímpeto de adotar uma forma específica decomportamento não vem de certo tipo de indivíduo, e sim de uma característicado ambiente.Em meados da década de 1980, Kelling foi contratado pela New YorkTransit Authority como consultor e insistiu que colocassem em prática a teoriadas janelas quebradas. A organização concordou e nomeou um novo diretor parao metrô, David Gunn. Ele supervisionaria a reconstrução do sistema metroviário,um projeto de bilhões de dólares. Muitos defensores do metrô disseram a Gunnna época que não se preocupasse com as pichações, que se concentrasse nasquestões mais importantes relacionadas com o crime e a confiabilidade dessemeio de transporte. E o conselho parecia sensato. Ficar pensando em rabiscosnum momento em que todo o sistema estava prestes a entrar em colapso pareciatão absurdo quanto esfregar os deques do Titanic quando ele já estava indo emdireção aos icebergs. Mas Gunn insistiu. "As pichações são o símbolo do colapsodo sistema", diz ele. "Quando se estudava o processo de reestruturação daempresa e da recuperação do seu moral, era preciso vencer a batalha contra aspichações. Sem isso, todas as reformas administrativas e mudanças físicas nãoaconteceriam. Novos trens no valor aproximado de US$10 milhões cada umestavam para entrar em circulação e, se não fizéssemos algo para protegê-los,sabíamos exatamente o que iria acontecer. Durariam um dia e depois seriamalvo dos vândalos."Gunn traçou uma nova estrutura administrativa e um conjunto preciso demetas e horários visando limpar o metrô linha a linha, trem a trem. Começoucom o expresso número sete, que liga o Queens à região central de Manhattan, eexperimentou as novas técnicas para remover a tinta. Nos vagões de açoinoxidável foram usados solventes. As composições que eram pintadasreceberam tinta nova por cima das pichações. Gunn estabeleceu que não haveriaretrocesso, ou seja, não se permitiria que um vagão, uma vez "recuperado",fosse novamente alvo de vandalismos. "Fomos escrupulosos quanto a isso",afirmou ele. No fim da linha um, no Bronx, onde os trens param antes deretornar a Manhattan, Gunn montou uma estação de limpeza. Se um vagãochegasse rabiscado ali, as marcas tinham que ser removidas ou ele seria retiradode serviço. Carros "sujos", que ainda estavam com pichações, não deveriamnunca se misturar com os vagões "limpos". A idéia era enviar uma mensagembem clara aos próprios vândalos."No Harlem, na Rua 135, havia um pátio onde os trens ficavamestacionados à noite", continua ele. "Os garotos apareciam na primeira noite epintavam as laterais dos vagões de branco. Na noite seguinte, quando a tinta jáestava seca, eles voltavam e traçavam o esboço. Na terceira noite, o coloriam. Otrabalho levava três dias. Sabíamos que eles estavam trabalhando num dos trenssujos e ficávamos esperando que terminassem o seu mural. Então, aparecíamoscom os rolos e pintávamos tudo. Os meninos choravam, mas continuávamos,para cima e para baixo. Era uma mensagem para eles. Se quisessem passar trêsnoites estragando um trem, tudo bem. Só que essa composição jamais veria a luzdo dia."A limpeza das pichações promovida por Gunn se estendeu de 1984 a 1990.Àquela altura, a Transit Authority contratou William Bratton para chefiar apolícia de trânsito. Assim teve início a segunda fase da recuperação do sistemametroviário. Como Gunn, Bratton era um seguidor da teoria das janelasquebradas. Ele descreve Kelling como o seu mentor intelectual, e o seu primeiropasso como chefe de polícia se mostrou tão quixotesco quanto o de Gunn. Comoos índices de crimes graves no sistema metroviário se mantinham altos, Brattonresolveu acabar com as viagens de graça. Por quê? Porque acreditava que, assimcomo as pichações, o calote nas passagens poderia ser um sinal, uma pequenaexpressão de desordem que convidava a delitos mais sérios. Estimava-se quetodos os dias 170 mil pessoas davam um jeito de entrar no metrô sem pagar.Algumas delas eram crianças, que simplesmente pulavam a roleta. Outrasforçavam a entrada empurrando a roleta ao contrário. E, assim que dois ou trêsindivíduos começavam a fraudar o sistema, outros – que talvez jamais tivessempensado em burlar a lei − faziam o mesmo com base na idéia de que, se alguémestava entrando ali de graça, eles também não deviam pagar. E a história viravauma bola de neve. O problema se exacerbava pelo fato de que não era fácilcombater o calote. Como o que estava em jogo era somente US$1,25, a políciade trânsito achava que não valia a pena perder tempo com isso, sobretudo quandohavia crimes graves em número suficiente acontecendo nas plataformas e nostrens.Bratton é um homem animado e carismático, um líder nato, e rapidamentea sua presença se fez sentir. Sua mulher ficara em Boston, portanto ele estavalivre para trabalhar depois do expediente e vagava pela cidade nos trens noturnos,sentindo onde estavam os problemas e qual era a melhor maneira de combatê-los. Primeiro, escolheu as estações onde o calote nas passagens era a encrencamaior e manteve 10 policiais à paisana nas roletas. A equipe pegava os caloteirosum a um, algemava-os e deixava-os de pé na plataforma, formando umacorrente, até realizarem a "captura total". A idéia era mostrar, da forma maispública possível, que a polícia de trânsito estava falando sério agora e ia agir comrigor no caso dos espertinhos que viajavam de graça. Antes, os policiaispensavam duas vezes na hora de deter um desses aproveitadores porque a prisão,o deslocamento até a delegacia, o preenchimento de formulários e a espera peloprocesso levava um dia inteiro – tudo isso por um crime que, em geral, nãomerecia mais do que um tapa na mão. Bratton transformou um ônibus urbanonuma delegacia móvel, com aparelhos de fax, telefones, celas com grades eequipamento para datiloscopia. O tempo total para se efetuar uma prisão logo sereduziu a uma hora. Bratton também insistiu na realização de um levantamentode todos os presos. Não havia dúvida: um em cada sete tinha uma ordem deprisão pendente por um crime anterior, enquanto um em cada 20 portava um tipode arma. De repente, ficou fácil convencer a polícia de que fazia sentidocombater o calote. "Para os policiais foi uma mina", escreve Bratton. "Cadaprisão era como abrir uma caixa de surpresas. Que brinquedo vou encontrar?Uma arma? Uma faca? Uma ordem de prisão? Temos aqui um assassino?Depois de um tempo, os mal-intencionados perceberam a mudança ecomeçaram a deixar as armas em casa e a pagar a passagem." Com Bratton nocomando, o número de pessoas expulsas das estações de metrô – por embriaguezou comportamento impróprio – triplicou logo nos primeiros meses. As prisões porcrimes menores, o tipo de delito insignificante em que não se prestava atenção nopassado, quintuplicaram entre 1990 e 1994. Bratton transformou a polícia detrânsito numa organização concentrada nas menores infrações, nos detalhes davida subterrânea.Quando Rudolph Giuliani foi eleito prefeito de Nova York, em 1994, Brattonfoi nomeado chefe do Departamento de Polícia da Cidade de Nova York eaplicou as mesmas estratégias ao município em grande escala. Instruiu ospoliciais a agir com rigor nos casos de crimes contra a qualidade de vida. Porexemplo, eles deviam reprimir a ação dos "caras do rodinho", que abordavam oscarros nos cruzamentos e exigiam dinheiro para lavar o pára-brisa, e de qualquerum que apresentasse nas calçadas um comportamento equivalente aos dossaltadores de roletas e pichadores do metrô. Na administração anterior, umasérie de restrições tinha deixado a polícia algemada", diz Bratton. "Tiramos asalgemas. Reforçamos as leis contra a embriaguez em áreas públicas e contraaqueles que urinavam nas ruas e passamos a prender os reincidentes. Isso incluiuos que jogavam garrafas vazias nas calçadas ou se envolviam até mesmo emdanos insignificantes à propriedade." Quando o índice de crimes na cidadecomeçou a cair – de forma tão rápida e drástica quanto no metrô –, Bratton eGiuliani apontaram para a mesma causa. Delitos aparentemente insignificantescontra a qualidade de vida, eles disseram, determinavam o Ponto da Virada doscrimes violentos.A teoria da janela quebrada e o Poder do Contexto são a mesma coisa.Ambos se baseiam na premissa de que uma epidemia pode ser revertida, podedar uma guinada, consertando-se detalhes mínimos do ambiente imediato. Naverdade, essa é uma idéia bastante radical. Pense de novo, por exemplo, noconfronto entre Bernie Goetz e aqueles quatro jovens no metrô: Allen, Ramseur,Cabey e Canty. Pelo menos dois deles, segundo relatórios, pareciam estardrogados na hora do incidente. Vinham todos do conjunto habitacional ClaremontVillage, situado numa das piores áreas do sul do Bronx. Cabey, na época, estavaindiciado por assalto à mão armada. Canty já havia sido preso por roubo. Allen,por tentativa de agressão. Allen, Canty e Ramseur também já tinham sidocondenados por delitos menos graves, que variavam de conduta imprópria apequenos furtos. Dois anos depois dos disparos de Goetz, Ramseur foi condenadoa 25 anos de prisão por estupro, roubo, sodomia, abuso sexual, agressão, usocriminoso de arma de fogo e posse de bens roubados. É difícil se surpreenderquando alguém assim acaba metido num incidente violento.Agora, Goetz. Ele fez algo totalmente fora dos padrões. Profissionaisbrancos não costumam atirar em negros no metrô. No entanto, tendo um bomconhecimento de quem ele é, vemos que se encaixava no estereótipo de umapessoa que acaba se metendo em situações violentas. Seu pai era umdisciplinador rígido e de temperamento exaltado, e Goetz com freqüência era oalvo da sua fúria. No colégio, os colegas implicavam com ele, era o último a serconvocado para os jogos escolares, uma criança solitária que quase semprevoltava para casa chorando. Depois de formado, foi trabalhar na Westinghouse,montando submarinos nucleares. Não ficou lá por muito tempo. Estava semprebatendo de frente com os superiores a respeito do que ele considerava práticas demá qualidade e ações de conveniência. Às vezes, desobedecia às normas daempresa e do sindicato fazendo trabalhos que, por contrato, estava proibido deaceitar. Alugou um apartamento em Manhattan, perto da Sexta Avenida, numtrecho da cidade que na época vivia cheio de traficantes de drogas e moradoresde rua. Um dos porteiros do prédio, de quem Goetz era amigo, levou uma surrafeia de delinqüentes. Goetz estava obcecado com a idéia de limpar o bairro.Queixava-se sempre de uma banca de jornal vazia que ficava perto de onde elemorava, pois era usada por vagabundos como lixeira e fedia a urina. Uma noite,misteriosamente, ela pegou fogo, e no dia seguinte Goetz estava na rua varrendoos detritos. Certa vez, numa reunião da comunidade, ele chocou os presentes aodizer: "O único jeito de limpar esta rua é acabando com os cucarachos e osnegros." Numa tarde em 1981, ele foi agredido por três jovens negros ao entrarna estação Canal Street. Saiu correndo dali perseguido pelos três. Eles levaram oseu equipamento eletrônico, bateram nele e o jogaram contra uma porta devidro, deixando-o com uma lesão permanente no peito. Com a ajuda de umfuncionário da saúde pública que estava de folga, Goetz conseguiu dominar umdos três assaltantes. Mas a experiência o deixou exasperado. Teve que passar seishoras na delegacia, falando com a polícia, enquanto o agressor foi liberado duashoras depois acusado apenas de má conduta. Ele solicitou um porte de arma àprefeitura. Negaram. Em setembro de 1984, seu pai morreu. Três meses depois,ele se viu diante dos quatro jovens negros no metrô e começou a atirar.Esse, em resumo, era um homem com um problema de autoridade, comuma forte sensação de que o sistema não funcionava e uma pessoa que tinha sidoalvo recente de humilhações. Lillian Rubin, sua biógrafa, diz que é muito difícilque Goetz tenha tomado a decisão de morar na Rua 14 por acaso. "Para Bernie",escreve ela, "parecia haver algo de sedutor no cenário. Precisamente por suasdeficiências e incômodos, era um alvo bastante amplo para a raiva que existedentro dele. Dirigindo sua ira para o mundo exterior, Goetz não precisa lidar como que tem dentro de si. Ele reclama da sujeira, do barulho, dos bêbados, doscrimes, dos traficantes, dos usuários de drogas. E com razão". As balas que eledisparou, conclui Rubin, "tinham como alvo coisas que existiam tanto no seupassado quanto no presente".Se você pensar no que aconteceu no trem número dois dessa forma, os tiroscomeçam a parecer inevitáveis. Quatro desordeiros enfrentam um homem comaparentes problemas psicológicos. O fato de ter acontecido no metrô pareceacidental. Goetz teria atirado naqueles rapazes ainda que estivesse sentado numalanchonete. A maior parte das nossas explicações para o comportamentocriminoso segue a mesma lógica. Os psiquiatras falam dos delinqüentes comopessoas que têm o desenvolvimento psicológico comprometido, cujorelacionamento com os pais foi patológico e que são carentes de modelosadequados. Existe uma literatura relativamente nova sobre genes que podem ounão predispor certos indivíduos ao crime. No âmbito popular, há um númeroinfindável de livros escritos por conservadores que afirmam que os delitosdecorrem da falta de moral – de comunidades, escolas e pais que não ensinammais as crianças a observar a diferença entre o certo e errado. Todas essasteorias são, em essência, maneiras de dizer que o criminoso é um tipo depersonalidade que se distingue pela insensibilidade no que se refere às regras deuma sociedade normal. Indivíduos com desenvolvimento psicológicocomprometido não sabem manter relacionamentos saudáveis. Gente compredisposições genéticas para a violência tem um ataque de fúria quando pessoasnormais mantêm a calma. Quem não aprende a diferença entre certo e erradonão é capaz de reconhecer o que é um comportamento adequado e o que não é.Aquele que cresce na pobreza, sem pai e sendo esbofeteado pelo racismo nãosente o mesmo compromisso com as normas sociais ensinadas nos laressaudáveis de classe média. Bernie Goetz e aqueles quatro criminosos no metrôeram, nesse sentido, prisioneiros do seu próprio mundo disfuncional.Mas o que a teoria das janelas quebradas e o Poder do Contexto sugerem?Exatamente o oposto. Que o criminoso – longe de ser um indivíduo que age porrazões fundamentais, intrínsecas, e que vive em seu próprio mundo – é, naverdade, alguém profundamente sensível ao ambiente, que está alerta a todos ostipos de sinais e que é motivado a cometer crimes baseado na sua percepção douniverso ao redor. Essa é uma idéia radical e, em certo sentido, inacreditável.Existe aqui uma dimensão ainda mais extrema. O Poder do Contexto é umargumento ambiental. Ele afirma que o comportamento é uma função docontexto social. Porém, esse é um tipo muito estranho de ambientalismo. Nosanos 1960, os liberais tinham uma forma semelhante de argumentar, só quequando falavam da importância do ambiente estavam se referindo à relevânciade fatores sociais fundamentais. O crime, na sua visão, era resultado da injustiçasocial, de iniqüidades econômicas estruturais, do desemprego, do racismo, dedécadas de negligência social e institucional; por isso, quem quisesse acabar comele tinha que dar passos heróicos. O Poder do Contexto, no entanto, sustenta que oimportante são as pequenas coisas. Ele diz que, no fim das contas, o confronto nometrô entre Bernie Goetz e aqueles quatro rapazes teve muito pouco a ver com acomplicada patologia psicológica do atirador e, muito pouco também, com osantecedentes e a pobreza dos garotos baleados. Mas que teve tudo a ver com amensagem transmitida pelas pichações nas paredes e pela desordem nas roletas.O Poder do Contexto estabelece que não precisamos resolver grandes problemaspara encontrar a solução para a criminalidade. Podemos prevenir a ocorrênciade delitos apenas limpando a sujeira das paredes e prendendo os caloteiros: aepidemia de crimes tem Pontos da Virada tão simples e objetivos quanto a desífilis em Baltimore e a moda dos Hush Puppies. Isso era o que eu pretendia dizerquando chamei o Poder do Contexto de teoria radical. Giuliani e Bratton – longede serem conservadores, como costumam ser classificados – representam, noque concerne aos crimes, a posição mais liberal que se possa imaginar. Como épossível que o que se passava na cabeça de Bernie Goetz não tenha importância?E, se de fato é verdade que isso não faz diferença, por que é tão difícil acreditar?4.No capítulo dois, quando eu estava discutindo o que fazia alguém como MarkAlpert ser tão importante para as epidemias de propaganda boca a boca,mencionei dois aspectos da persuasão que pareciam contrariar as expectativas.Um deles foi o estudo que mostrou como as pessoas que assistiam a PeterJennings na ABC apresentavam uma tendência maior a votar no partidorepublicano do que as que viam os programas de Tom Brokaw e Dan Rather. Issoacontecia porque, de forma inconsciente, Jennings manifestava a sua preferênciapelos candidatos republicanos. A segunda revelou como os indivíduoscarismáticos conseguiam – sem dizer nada e expondo-se muito pouco – contagiaros outros com suas emoções. As implicações dessas duas pesquisas chegam àessência da Regra dos Eleitos porque sugerem que aquilo que consideramosestados íntimos – preferências e emoções – está, na verdade, sofrendo fortes eimperceptíveis influências pessoais. Nos casos citados, seria a interferênciaaparentemente insignificante do locutor de um telejornal que acompanhamos poralguns minutos todos os dias e a de alguém que está sentado ao nosso lado numaexperiência de dois minutos. A essência do Poder do Contexto é que esse mesmoconceito vale para certos tipos de ambiente, isto é, sem que necessariamenteavaliemos isso, nossos estados íntimos decorrem das circunstâncias exteriores.Na área da psicologia há numerosos estudos que comprovam esse fato. Vejamosalguns exemplos.No início da década de 1970, um grupo de cientistas sociais da Universidadede Stanford, liderados por Philip Zimbardo, decidiu simular uma cadeia no porãodo prédio do Departamento de Psicologia.5 Separaram 10m do corredor efizeram uma cela com uma parede pré-fabricada. Três pequenas celas, de 2 x2,50m, foram criadas a partir das salas do laboratório e receberam portaspintadas de preto e grades de aço. Um armário virou solitária. Em seguida, ogrupo publicou anúncios nos jornais recrutando voluntários, homens queconcordassem em participar da experiência. Apareceram 75 e, desses,Zimbardo e seus colegas escolheram 21 que se mostraram os mais saudáveis enormais nos testes psicológicos. Metade dos participantes foi escolhidaaleatoriamente para fazer o papel de guardas – eles receberam uniformes,óculos escuros e a responsabilidade de manter a ordem na prisão. A outrametade representaria os detentos. Zimbardo mandou o Departamento de Políciade Palo Alto "prender" os prisioneiros nas suas casas, algemá-los, levá-los para adelegacia, acusá-los de um crime fictício, colher as suas impressões digitais,vendar os seus olhos e levá-los para a prisão no porão do prédio. Lá, eles foramdespidos e receberam um uniforme com um número na frente e nas costas queseria a sua única identificação enquanto durasse a estada no cárcere.O propósito da experiência era tentar descobrir por que as prisões sãolugares tão desagradáveis. Seria porque estavam cheias de pessoas desagradáveisou porque eram ambientes tão desagradáveis que faziam as pessoas seremdesagradáveis? Na resposta a essa pergunta encontra-se, obviamente, a daquestão proposta por Bernie Goetz e a limpeza do metrô, isto é, até que ponto oambiente imediato influencia o comportamento das pessoas. Zimbardo ficouchocado com o que descobriu. Os guardas, até mesmo os que haviam dito antesque eram pacifistas, assumiram logo o papel de disciplinadores inflexíveis. Já naprimeira noite, acordaram os detentos às duas da madrugada e os mandaramfazer flexões, ficar em fila encostados na parede e cumprir outras tarefasarbitrárias. Na manhã do segundo dia, os prisioneiros se rebelaram. Arrancaramos números dos uniformes e armaram uma barricada nas celas. Os guardasreagiram despindo-os, acertando-os com jatos dos extintores de incêndio ejogando o chefe da rebelião na solitária. "Havia momentos em que éramosbastante agressivos. Chegávamos bem perto do rosto deles e gritávamos",lembra-se um dos guardas. "Fazia parte da atmosfera de terror." Com o avançoda experiência, os guardas foram ficando cada vez mais cruéis e sádicos. "Nãoestávamos preparados para a intensidade da mudança nem para a rapidez comque ela aconteceu", diz Zimbardo. Os guardas faziam os prisioneiros declararque se amavam uns aos outros e os obrigavam a marchar pelo corredor,algemados, com sacos de papel cobrindo a cabeça. "Era um comportamentototalmente oposto ao que tenho hoje", recorda-se outro guarda. "Acho que euestava sendo muito criativo em termos de crueldade mental." Após 36 horas, umdos prisioneiros teve um ataque histérico e precisou ser liberado. Outros quatrotiveram que ser soltos em decorrência de "extrema depressão emocional, choro,raiva e ansiedade aguda". A intenção inicial de Zimbardo era fazer umaexperiência de duas semanas. Depois de seis dias, porém, ele a suspendeu."Agora percebo", um dos prisioneiros declarou no fim, "que não importavaquanto eu acreditasse que estava no controle da minha mente, eu tinha menosdomínio do meu comportamento como detento do que imaginava". Outro disse:"Comecei a sentir que estava perdendo a minha identidade, que a pessoa que euchamo de ______, a que se apresentou como voluntária para me colocar naquelaprisão (porque era uma prisão para mim, continua sendo, não considero isso umaexperiência nem uma simulação...) estava distante de mim, muito longe, até que,por fim, eu não era mais aquela pessoa. Eu era o 416. Eu era o meu número. E o416 ia ter que decidir o que fazer."A conclusão de Zimbardo foi de que existem situações específicas tão fortesque podem derrubar as nossas predisposições intrínsecas. A palavra-chave nessecaso é situação. Ele não está falando de ambiente, de grandes influênciasexternas sobre toda a nossa vida. Não está negando que a educação querecebemos dos nossos pais afeta a pessoa que somos nem que o tipo de colégioque freqüentamos, os nossos amigos e o bairro onde moramos interferem emnosso comportamento. Certamente, todos esses fatores são importantes.Zimbardo também não está desconsiderando o papel dos genes na determinaçãode quem somos. A maioria dos psicólogos acredita que a natureza – a genética –é responsável por 50% dos motivos que nos levam a agir de determinadamaneira. O que ele quer dizer é que há momentos, lugares e condições em quegrande parte de tudo isso pode ser anulada. Existem ocasiões em que é possívelpegar pessoas normais, de boas escolas, de famílias felizes e de bairros tranqüilose interferir em seu comportamento de modo significativo pela simples mudançade detalhes da situação em que elas se encontram.Esse mesmo argumento foi usado, talvez de forma mais explícita, nadécada de 1920, numa série de experiências marcantes realizadas por doispesquisadores de Nova York, Hugh Hartshorne e M. A. May. Participaramdesses estudos cerca de 11 mil estudantes cujas idades variavam de 8 a 16 anos.Ao longo de muitos meses, eles foram submetidos a dezenas de avaliações, todasdestinadas a medir a honestidade. Os tipos de testes que Hartshorne e Mayaplicaram foram essenciais para suas conclusões, portanto mencionarei algunsdeles com mais detalhes.6Uma parte, por exemplo, foi de simples testes de aptidão criados peloInstituto de Pesquisas Educacionais, um precursor do grupo que hoje desenvolveo SAT (exame padronizado aplicado a alunos do ensino médio que estão secandidatando à universidade). No teste de completar frases, as crianças tinhamque preencher os espaços em branco com palavras. Por exemplo: "Opobrezinho_____ tem _____ para _____; ele está com fome." No exame dearitmética, havia problemas do tipo "Se 1kg de açúcar custa US$1, quanto custam5kg?". As respostas deviam ser escritas na margem do papel. Os estudantestinham apenas uma fração do tempo necessário para responder a tudo, de formaque muitos deles deixavam um grande número de questões em branco.Terminado o prazo, as provas eram recolhidas e recebiam uma nota. No diaseguinte, era dado o mesmo tipo de teste, com perguntas diferentes, porém deigual nível de dificuldade. Dessa vez, entretanto, os alunos recebiam o gabarito e,sob uma supervisão mínima, deviam dar a sua própria nota ao trabalho.Hartshorne e May, em outras palavras, haviam montado uma situação quefacilitava a cola. Com acesso às respostas e tendo diante de si diversas questõesem branco, eram consideráveis as chances de que eles trapaceassem. E, com asprovas anteriores nas mãos, Hartshorne e May podiam comparar as respostasdos dois dias e ter uma boa noção de quanto cada criança recorria à fraude.Outro conjunto de avaliações envolveu os chamados testes de rapidez,medições muito mais simples de habilidade. Os alunos recebiam 56 pares denúmeros para somar. Ou se mostravam a eles centenas de seqüências de letrasdo alfabeto dispostas aleatoriamente e se pedia que sublinhassem todos os "As".Eles tinham um minuto para completar cada uma dessas provas. Em seguida,recebiam um conjunto equivalente de testes, porém dessa vez sem limite detempo, o que lhes permitia continuar trabalhando se quisessem. Em resumo, osdois psicólogos submeteram os estudantes a numerosos tipos de exames emsituações diversas. Aplicaram testes de habilidades físicas, como flexões na barrae saltos em distância, e observaram secretamente os participantes para ver seeles mentiriam depois ao relatar seu desempenho. Distribuíram provas paraserem feitas em casa, onde a oportunidade de consultar dicionários e pedir ajudaseria grande, e compararam as respostas com as de testes similares feitos naescola, onde trapacear era impossível. No fim, os resultados encheram trêsgrossos volumes e, no processo, desafiaram muitos preconceitos sobre o que écaráter.A primeira conclusão a que eles chegaram é que, obviamente, acontecemuita trapaça. Em um dos casos, as pontuações nos testes em que era possívelrecorrer a artimanhas foram 50% superiores, em média, às pontuações"honestas". Quando Hartshorne e May começaram a procurar padrões nasfraudes, fizeram algumas constatações igualmente óbvias. Crianças inteligentescostumam trapacear um pouco menos do que as menos inteligentes. As meninasagem assim tanto quanto os meninos. As crianças mais velhas, mais do que asmais jovens; as de famílias estáveis e felizes, um pouquinho menos do que as delares instáveis e infelizes. A análise dos dados mostra padrões gerais de coerênciacomportamental entre um teste e outro.Mas essa coerência não é tão grande quanto se poderia esperar. Não existeum pequeno círculo fechado de trapaceiros e outro de alunos honestos. Algumascrianças usam artimanhas em casa, mas não na escola; outras fazem isso naescola, porém não em casa. Por exemplo, o fato de uma delas colar na prova decompletar palavras não era um prognóstico rígido de que ela também recorreriaà fraude na hora de, digamos, marcar os "As" no exame de rapidez. Hartshornee May descobriram que, submetendo um mesmo grupo de crianças ao mesmoteste, nas mesmas circunstâncias, com seis meses de intervalo, elas trapaceariamda mesma maneira em ambos os casos. Contudo, alterando-se qualquer umadessas variáveis – o material da prova ou a situação em que ela era aplicada –, ostipos de artimanha também mudavam.O que Hartshorne e May constataram, portanto, foi que a honestidade não éum traço fundamental, ou "unificado", como dizem. Uma característica como ahonestidade, eles concluíram, sofre uma considerável influência da situação.Veja o que escreveram sobre o assunto:A maioria das crianças enganará em certasocasiões, em outras, não. Os atos de mentir, colar eroubar, como avaliamos nas situações de testeusadas nesses estudos, estão apenas ligeiramenterelacionados. Até mesmo a cola na sala de aula éuma ação muito específica, pois uma criança podefazer isso no teste de aritmética, e não no deortografia, etc. Se um aluno vai praticar ou não afraude em determinada situação, depende, emparte, da sua inteligência, da sua idade, do seuambiente familiar e de seus semelhantes e, emparte, da natureza da própria situação e de comoessa criança se relaciona com ela.Percebo que isso é algo que contraria profundamente as nossasexpectativas. Se eu lhe pedir que descreva a personalidade dos seus melhoresamigos, você não terá dificuldade em responder nem dirá algo como: "O meuamigo Wilson é muito generoso, mas só quando sou eu que lhe faço um pedido, enão alguém da sua família." Ou: "A minha amiga Alice é tremendamentehonesta na vida pessoal, porém no trabalho às vezes é bastante traiçoeira." Emvez disso, você diria que Wilson é generoso e que Alice é honesta. Quando setrata de personalidade, todos nós pensamos em termos absolutos: uma pessoa éde um jeito ou não é. No entanto, o que Zimbardo, Hartshorne e May estãosugerindo é que isso está errado. Pelo raciocínio deles, se pensamos somente nostraços inerentes e nos esquecemos do papel das situações, estamos nosenganando sobre as verdadeiras causas do comportamento humano.Por que cometemos esse erro? Provavelmente por causa da maneira comoa evolução estruturou o nosso cérebro. Por exemplo, os antropólogos queestudam os macacos vervet, naturais da África, descobriram que esses animaisidentificam muito mal o significado de coisas como a carcaça de um antílopependurada numa árvore (indício certo de que existe um leopardo pelasredondezas) ou o rastro de uma serpente. Esse tipo de macaco é conhecido porentrar com toda a tranqüilidade numa moita, ignorando os rastros recentes deuma cobra e, depois, ficar atordoado quando a vê. Isso não significa que overvets são idiotas: eles são muito sofisticados no que se refere a outros indivíduosde sua espécie. Ao ouvirem o chamado de um macho, são capazes dereconhecer se é do seu próprio bando ou não. Quando escutam um bebê vervetchorando, eles olham imediatamente não para o filhote, mas para a mãe –sabem, na mesma hora, de quem é a cria. Um vervet, em outras palavras, émuito bom em processar certos dados relativos aos vervets, porém não tão bomquando se trata de processar outros tipos de informação.O mesmo vale para os seres humanos.Veja o seguinte quebra-cabeça. Suponha que eu lhe dê quatro cartasetiquetadas com as letras A e D e os algarismos 3 e 6. A regra do jogo é que umacarta com uma vogal tem sempre um número par do outro lado. Que cartas vocêterá que virar para provar que a regra é verdadeira? Duas: a A e a 3. Quase todasas pessoas que fazem esse teste, porém, não acertam. Tendem a responderapenas a carta A ou a A e a 6. É mesmo uma questão difícil. Agora vou fazeroutra pergunta. Suponha que quatro pessoas estão bebendo num bar. Uma tomaCoca-Cola, uma tem 16 anos, uma bebe cerveja e uma tem 25 anos. Se formosobservar a lei que proíbe a ingestão de cerveja por menores de 21 anos, de quaisdessas pessoas teremos que conferir a carteira de identidade para ter certeza deque a lei está sendo obedecida? Agora a resposta é fácil. De fato, tenho certezade que quase todos acertarão: da que está bebendo cerveja e da que tem 16 anos.Mas, segundo a criadora desse exemplo, a psicóloga Leda Cosmides, esse é umquebra-cabeça idêntico ao das cartas com A, D, 3 e 6. A diferença é que estáestruturado para tratar de pessoas, em vez de números, e, como seres humanos,somos muitos mais sofisticados no que se refere ao nosso próprio mundo do queao universo abstrato.7O erro em pensar que o caráter é algo unificado e abrangente é muitosemelhante a uma espécie de ponto cego na maneira como processamos asinformações. Os psicólogos chamam essa tendência de Erro Fundamental deAtribuição, que é uma forma elegante de dizer que, em geral, quando se trata deinterpretar o comportamento dos outros, os seres humanos falham aosuperestimar a importância de traços fundamentais de caráter e subestimar aimportância da situação e do contexto.8 Buscamos sempre uma explicação"temperamental" para os acontecimentos, e não "contextual". Em umaexperiência, por exemplo, pediu-se a algumas pessoas que observassem duasequipes de jogadores de basquete igualmente talentosos. Os atletas de um dosgrupos faziam arremessos num ginásio bem iluminado, enquanto os demaisrealizavam os arremessos num ginásio mal iluminado (e, é claro, perdiam muitascestas). Depois, os observadores deveriam avaliar os jogadores. Os que estavamno ginásio bem iluminado foram considerados superiores. Em outra experiência,um grupo de pessoas é informado de que vai participar de um jogo de perguntase respostas. Em seguida, formam-se duplas. Cada um dos parceiros escolhe aoacaso um cartão que lhe dirá se ele fará o papel de Adversário ou deQuestionador. Quem interpreta o Questionador deve relacionar 10 perguntas"difíceis, mas não impossíveis de responder", baseadas nas áreas em que éespecialista ou em que tem interesse particular. Um conhecedor de músicafolclórica ucraniana, por exemplo, formulará questões a respeito desse tema. Asperguntas são, então, dirigidas ao Adversário. No fim do jogo, cada uma daspartes avalia o nível de conhecimento geral da outra. Os Adversários sempreclassificam os Questionadores como muito mais inteligentes do que eles.Ainda que essas experiências sejam feitas de mil maneiras diferentes, aresposta é quase sempre idêntica. Isso acontece até mesmo quando se dá àspessoas uma explicação ambiental clara e imediata para o comportamento quedevem avaliar: que o ginásio, no primeiro caso, tem poucas luzes acesas; que oAdversário terá que responder a perguntas tendenciosas e manipuladas. No fim,não faz muita diferença. Existe algo em nós que nos leva instintivamente a quererexplicar o mundo que nos cerca em termos das características essenciais daspessoas: ele joga basquete melhor, aquela mulher é mais inteligente do que eu.Agimos dessa forma porque, assim como os vervets, estamos muito maissintonizados com sinais pessoais do que contextuais. O Erro Fundamental deAtribuição também torna o mundo um lugar bem mais simples e compreensível.Nos últimos anos, por exemplo, uma idéia vem despertando grande interesse: ade que um dos fatores fundamentais para a explicação da personalidade é aordem de nascimento. Os irmãos mais velhos seriam dominadores econservadores, enquanto os mais novos seriam mais criativos e rebeldes. Quandoos psicólogos tentam verificar essa tese, suas constatações soam, no entanto,como as conclusões de Hartshorne e May. Nós refletimos as influências daordem de nascimento; porém, como observa a psicóloga Judith Harris em Digamecom quem anda, somente dentro da família.9 Longe dela – em contextosdiferentes –, os irmãos mais velhos não tendem a ser mais dominadores nem osmais novos mais rebeldes do que qualquer outra pessoa. O mito da ordem denascimento é um exemplo do Erro Fundamental de Atribuição em ação. Mas dápara entender por que a idéia nos atrai. É mais fácil definir as pessoas apenas emtermos da sua personalidade na família. É uma espécie de atalho. Se tivéssemosque ficar qualificando toda avaliação daqueles que nos rodeiam, comocompreenderíamos o mundo? Seria muito mais difícil tomar todas as decisõesque temos que tomar para saber se gostamos de alguém, se o amamos, seconfiamos nele ou se queremos lhe dar um conselho. O psicólogo Walter Mischelargumenta que a mente humana tem uma espécie de "válvula redutora" que"cria e mantém a percepção de continuidade mesmo quando observamosmudanças ininterruptas de comportamento". Ele escreve:Quando observamos uma mulher que, algumasvezes, parece hostil e muito independente, maspassiva, dependente e feminina em outrasocasiões, nossa válvula redutora costuma nos fazerescolher entre as duas síndromes. Decidimos queum padrão está a serviço do outro ou que ambosservem a um terceiro motivo. Ela deve ser umapessoa castradora com uma fachada depassividade – ou quem sabe é uma mulher suave,passiva e dependente que se defende com umacapa de agressividade. No entanto, talvez anatureza seja maior do que os nossos conceitos eessa mulher possa ser uma pessoa hostil, muitoindependente, passiva, dependente, feminina,agressiva, suave, castradora − tudo num pacote só.É claro que o que ela é em determinado momentonão se manifesta por acaso nem por capricho –depende de onde, com quem e como ela está,além de muitas outras coisas. Contudo, cada umdesses aspectos do seu eu pode ser umacaracterística autêntica e real do seu ser global.10Caráter, portanto, não é o que pensamos ser, ou melhor, o que queremosque seja. Não é um conjunto estável de traços intimamente relacionados quepodemos identificar com facilidade. Ele só parece ser assim por uma falha naorganização do nosso cérebro. Caráter é mais como um pacote de hábitos,tendências e interesses levemente amarrados e dependentes, em certosmomentos, das circunstâncias e do contexto. A maioria de nós parece ter umcaráter coerente porque quase todos sabemos controlar nossos ambientes. Eu medivirto muito em jantares. Por isso convido sempre os meus amigos para essetipo de reunião. Eles me vêem ali e me acham brincalhão. No entanto, se eu nãopudesse fazer isso, se, pelo contrário, meu amigos me encontrassem em muitasoutras situações sobre as quais tenho pouco ou nenhum controle – digamos, diantede quatro jovens hostis num metrô sujo e caindo aos pedaços –, provavelmentejá não me considerariam mais tão engraçado.5.Anos atrás, dois psicólogos da Universidade de Princeton, John Darley e DanielBatson, realizaram um estudo inspirado na parábola do Bom Samaritano.11 Essahistória do Evangelho de Lucas, no Novo Testamento, conta que um viajante éassaltado, surrado e deixado quase morto à beira da estrada que vai de Jerusaléma Jericó. Um sacerdote e um levita – ambos pessoas dignas e devotas –encontram o homem, porém não param, "passando ao largo". A única pessoaque o ajuda é um samaritano – membro de uma minoria desprezada – que "vaiaté ele e trata suas feridas" e o leva a uma estalagem. Darley e Batsondecidiram reproduzir esse estudo no Seminário Teológico de Princeton. Foi umaexperiência dentro da tradição do Erro Fundamental de Atribuição e é umaimportante demonstração de como o Poder do Contexto tem implicações nanossa maneira de pensar em todos os tipos de epidemias sociais, não apenas nocrime violento.Darley e Batson se reuniram individualmente com membros de um grupode seminaristas e lhes pediram que preparassem uma palestra curta,extemporânea, sobre determinado tema bíblico e a apresentassem em seguidanuma sala de um prédio próximo. Toda vez que um aluno saía para dar apalestra, encontrava um homem caído num beco, com a cabeça baixa, os olhosfechados, tossindo e se lamentando. A questão era: quem pararia para ajudá-lo?Para obterem resultados mais significativos, Darley e Batson introduziram trêsvariáveis no estudo. Primeiro, antes mesmo do início da experiência, os alunosresponderam a um questionário sobre o motivo de terem escolhido estudarteologia. Eles consideravam a religião um meio de realização pessoal eespiritual? Ou estavam buscando um instrumento prático que desse sentido à suavida diária? Os pesquisadores também variaram o tema sobre o qual osseminaristas tinham que falar. A alguns solicitaram que discorressem sobre arelevância do sacerdócio profissional para a vocação religiosa. A outros deram aparábola do Bom Samaritano. Por fim, as instruções transmitidas a cada umdeles se diversificaram. Em alguns casos, ao se despedir do aluno e encaminhá-lo à palestra, o pesquisador olhava para o relógio e dizia: "Ah, você está atrasado.Já estão esperando por você há um tempinho. É melhor irmos." A outros eleinformava: "Eles ainda não estão prontos, faltam alguns minutos, mas você podeir andando agora."Se pedirmos às pessoas que prevejam quais seminaristas bancariam o BomSamaritano (e estudos subseqüentes fizeram isso), as respostas serão muitocoerentes. Quase todas elas dirão que os alunos que ingressaram no ministériopara ajudar o próximo e os que se lembraram da importância da compaixão porterem acabado de ler a parábola do Bom Samaritano serão aqueles com maiorprobabilidade de parar e prestar auxílio. A maioria de nós, acredito, concordacom esse raciocínio. De fato, nenhum desses fatores fez a mínima diferença. "Édifícil imaginar um contexto em que as normas referentes a amparar quem estásofrendo estejam mais evidentes do que no caso de alguém que está pensando noBom Samaritano. No entanto, isso não provocou um aumento significativo nonúmero de comportamentos de ajuda, concluíram Darley e Batson. "Naverdade, em várias ocasiões, um seminarista apressado para dar a palestra sobrea parábola do Bom Samaritano pisou na vítima." O único elemento querealmente teve influência foi se o estudante estava com pressa. Do grupo dosapressados, 10% pararam para ajudar. Dos que sabiam que ainda faltavamalguns minutos, 63% prestaram auxílio.O que esse estudo sugere, em outras palavras, é que, no fim das contas, asnossas convicções mais íntimas e o verdadeiro conteúdo dos nossos pensamentossão menos importantes na orientação das nossas ações do que o contextoimediato em que se dá o nosso comportamento. A frase "Ah, você está atrasado"teve o efeito de tornar um indivíduo normalmente compassivo em alguémindiferente ao sofrimento − isto é, em um momento específico, foi capaz detransformá-lo em uma pessoa diferente. Em essência, as epidemias dizemrespeito a esses processos de transformação. Quando procuramos fazer com queuma idéia, uma atitude ou um produto alcance o Ponto da Virada, estamostentando mudar o nosso público em algum aspecto, pequeno porém crítico:pretendemos contaminá-lo, arrebatá-lo com a nossa epidemia, fazer com que elepasse da hostilidade para a aceitação. É possível fazer isso por meio da influênciade tipos especiais de pessoas, de gente que tem relações sociais extraordinárias.Essa é a Regra dos Eleitos. Também se pode atingir esse objetivo mudando oconteúdo da comunicação, tornando a mensagem tão fácil de lembrar que ela sefixa na mente e leva as pessoas a agir. Esse é o Fator de Fixação. Acho que essasduas leis fazem sentido de modo natural, intuitivo. Mas não devemos nosesquecer de que pequenas mudanças de contexto podem ter a mesmaimportância quando se trata de deflagrar epidemias, mesmo que isso pareçaviolar algumas das nossas suposições mais arraigadas sobre a natureza humana.Isso não quer dizer que os nossos estados psicológicos íntimos e as nossashistórias pessoais não sejam importantes para explicar como nos comportamos.Um grande percentual daqueles que se envolvem em atos violentos, porexemplo, sofre de algum distúrbio psiquiátrico ou apresenta um histórico familiarde grande perturbação. Contudo, há uma diferença enorme entre ter umainclinação para a violência e cometer um ato violento. Um crime é um eventorelativamente raro e anormal. Para que ocorra, é necessário que alguma coisamais, algo extra, aconteça e leve uma pessoa perturbada a agir de formaviolenta. O que o Poder do Contexto diz é que esse Ponto da Virada pode ser tãosimples e banal quanto sinais cotidianos de desordem no estilo das pichações e docalote nas passagens de metrô. As implicações dessa idéia são imensas. A teoriaanterior, de que o temperamento é o responsável por tudo − que as causas docomportamento violento são sempre a "personalidade sociopata", a "falta desuperego", a incapacidade de adiar a satisfação ou genes portadores de algumtipo de maldade –, é, no fim das contas, a mais passiva e reacionária das tesessobre o crime. Ela sustenta que, se apanharmos um delinqüente, podemos ajudá-lo a se recuperar − dando-lhe Prozac, colocando-o numa terapia, tentandoreabilitá-lo –, mas que não há quase nada que possamos fazer para impedir que,antes de tudo, um crime seja cometido. O velho critério para lidar com asepidemias de criminalidade acarreta inevitavelmente a preocupação commedidas de defesa. Coloque mais uma tranca na porta para desencorajar oladrão e talvez estimulá-lo a ir à casa do vizinho. Deixe os bandidos presos pormais tempo, de modo que tenham menos chances de nos fazer mal também.Mude-se para um bairro mais abastado para ficar o mais longe possível damaioria dos marginais.Entretanto, uma vez que compreendemos a importância do contexto, isto é,que elementos específicos e relativamente pequenos do ambiente podem servirde Pontos da Virada, esse pensamento derrotista cai por terra. Os Pontos daVirada Ambientais são fatores que temos condições de mudar: podemosconsertar janelas quebradas, apagar as pichações e trocar os sinais que convidama práticas criminosas. Mais do que compreendido, o crime pode ser evitado.Existe aí uma dimensão mais ampla. Judith Harris argumentou com toda apropriedade que a influência dos colegas e da comunidade é mais importante doque a da família na determinação de como serão nossos filhos. Estudos sobredelinqüência infantil e índices de abandono dos estudos no ensino fundamental,por exemplo, revelam que uma criança se sai melhor quando tem uma famíliaperturbada, mas mora numa boa vizinhança do que quando tem uma boa família,porém vive numa vizinhança ruim. Como passamos muito tempo ressaltando aimportância e o poder da influência da família, pode parecer, à primeira vista,que isso não é verdade. No entanto, essa constatação é uma óbvia e sensataextensão do Poder do Contexto, porque diz que essas crianças são fortementemoldadas pelo ambiente externo, que as características do nosso mundo social efísico imediato – as ruas por onde caminhamos, as pessoas que encontramos –têm um papel significativo na definição da nossa maneira de ser e agir. Não éapenas o comportamento criminoso grave que é sensível aos sinais ambientais −todos os comportamentos são. Por mais estranho que pareça, se combinarmos osignificado do estudo na prisão de Stanford com o da experiência no metrô deNova York, a sugestão é de que é possível ser uma pessoa melhor numa rualimpa ou num metrô limpo do que num lugar cheio de lixo e pichado."Num caso como aquele, você está numa situação de combate", disseGoetz à sua vizinha My ra Friedman, num telefonema angustiado dias depois doconfronto. "Não dá para pensar normalmente. A memória nem funciona direito.A exaltação é muito grande. A visão muda. O campo de visão muda. Acapacidade muda. Aquilo que você é capaz de fazer muda." Ele agiu, continuaGoetz, "com maldade e selvageria... Se você encurrala um rato, é para matá-lo,não é mesmo? Eu reagi com maldade e selvageria, exatamente assim, como umrato".12É claro que sim. Ele estava numa toca de ratos.  

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