O mundo desmorona em raios e trovões do lado de fora, pena que essa não seja só uma sensação externa. A chaleira começa a apitar, desviando a minha atenção das partículas de água que escorrem pelo vidro da janela. Ponho a chaleira na bandeja com os outros condimentos. A passos curtos atravesso o corredor, tentando estabilizar a tremedeira das mãos. A luz nublada que vem das janelas e a lâmpada fria da luminária ao lado do sofá são suficientes para que eu possa servir as duas canecas de chá, disfarçado melhor o meu desconforto.
— Obrigada — Camilla agradece, agarrando a alça de porcelana.
— Pode acrescentar leite ou açúcar se quiser — aponto para os outros recipientes na bandeja.
— Obrigada, mas eu gosto dele puro — ela responde depois de um gole.
Se não fosse o barulho forte da chuva, seria fácil imaginar que estou surdo. O silêncio agudo deixa nítido que está faltando algo. Pelo canto do olho, a observo sem coragem de encará-la diretamente. Dizer que Camilla está abatida seria eufemismo. Seu rosto está completamente pálido, exceto pelas grandes olheiras ao redor dos olhos; o cabelo preso elegantemente em um coque, não tem o mesmo brilho de uma semana atrás; as unhas sempre impecáveis hoje estão sem cor, cortadas pelos próprios dentes. Não é justo comparar as nossas dores, por isso me nego a pensar em quem está sofrendo mais.
— Sinto falta dela — Camilla sussurra, quebrando o silêncio perturbador.
— Eu também — concordo e engulo um gole de chá que desce queimando, confortando o estômago.
— Já faz uma semana, e eu ainda acordo pensando que tudo não passou de um terrível pesadelo — ela comenta, encarando o chá.
— Também tenho essa sensação. Pena que dure pouco — desabafo a última frase olhando para o meu celular na mesinha de centro.
— Eu me sinto culpada por não ter entendido os sinais.
— E eu por ter ignorado — penso em voz alta.
— Como assim, ignorado? — Camilla me observa, esperando uma resposta.
—*—
Numa tarde fria, três dias antes do ocorrido, eu havia passado na casa da Sophi para terminamos um trabalho da escola, mas não estava muito focado com a estreia do meu jogo no dia seguinte.
— Como é que eu vou saber o conceito de felicidade desses filósofos, se eu nem sei o que é felicidade? — Sophi exclamou, irritada em frente ao computador.
— Ah é só joga a pergunta no Google e copiar a primeira resposta que aparece. — respondi sem olhar para ela, analisando no meu computador as últimas alterações que meu patrocinador havia pedido.
— É por isso que eu gosto de dormir, inconscientes não precisamos nos preocupar com nada.
Surgiu um silêncio então logo depois ela indagou com a voz mais baixa:
— Matheus, o que você acha que acontece quando a gente morre?
— Céu, inferno, reencarnação, sei lá Sophi. Mas Que papo mais estranho hein! — dei de ombros fechando o notebook — Já vou embora, tenho que deixa tudo pronto pra amanhã. Você dá conta de terminar o trabalho sozinha? — perguntei com mão na maçaneta da porta.
— Vou ver o que posso fazer — respondeu ela dando um sorriso tímido com os lábios fechados.
— Então vejo você amanhã.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Eu preciso conversar
Short StoryDurante uma tempestade no final da tarde, Matheus conversa sobre o suicídio da sua melhor amiga com a mãe dela. E no decorrer do diálogo e dos flashbacks, surge um fato que machuca bastante os dois. Esse conto também está disponível em versão impres...