TERCEIRA PARTE

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Um mês depois


 Ainda dói. E vai doer por algum tempo. Mas já não é mais o meu corpo inteiro, agora é só um pedaço que vai desinchando aos poucos, perdendo intensidade a cada dia.

No dia seguinte ao qual minha mãe me encontrou naquele caos emocional, ela me levou a uma psicóloga. Ela se chama Anahí, até que é legal, vem me ajudando bastante nessas últimas semanas, não só ela como a minha família toda também. Eles me vigiam e puxam conversa comigo constantemente, tem horas que chega a ser sufocante, mas no fundo eu prefiro assim, porque tenho medo de ficar sozinho e ter outro descontrole. Nem todos os dias são bons, tem aqueles momentos que uma lembrança puxa a outra e eu fico mais melancólico. Mas estou firme, vivendo um dia após o outro.

Caminho pelo parque tranquilamente, até o ponto de encontro que foi marcado. Hoje de manhã recebi um telefonema inesperado pedindo para conversar, dessa vez eu não recusei. Minha mãe queria vim comigo, mas consegui convencê-la a vim sozinho, garantindo liga caso algo saísse do controle.

Sento num banco de madeira desses de praça, embaixo de um carvalho gigante. O dia foge do que a sua estação sugere, está quente, o sol brilha forte deixando o parque cheio de pessoas passeando com seus cachorros, atletas de fim de semana correndo, e famílias inteiras aproveitando o dia para fazer um piquenique. É interessante está aqui sentado e observa o quando a vida pode ser boa, o quanto isso parece mais fácil pra uns quanto pra outros, mesmo sabendo que no fundo todos nós temos um canto obscuro a ser escondido e mantido em equilíbrio.

Observo um garotinho empinando uma pipa com o pai, quando ouço sua voz soar atrás de mim:

— Olá.

Viro para olhá-la. Camilla parece está melhor do quando a vi pela última vez, o cabelo está brilhando mais, as unhas estão esteticamente bem feitas mesmo sem cor, e aquelas manchas escuras em volta dos olhos desapareceram, apesar deles ainda parecerem cansados.

— Oi — digo me endireitando no banco.

— Como você está? — sua voz é pacifica.

— Estou seguindo, com uma ou outra derrapada. Mas e você?

— Sobrevivendo — ela se senta ao meu lado. — Além da terapia o meu irmão está me ajudando passando um tempo aqui comigo, o que é com certeza melhor do que ficar naquela casa sozinha, pelo menos até eu vendê-la.

— Fiquei surpreso com seu telefonema.

— Imaginei — ela fala observando o movimento do parque. — Nosso último encontro não foi dos mais fáceis. E foi por isso que eu te chamei aqui. Seria muito tarde para um pedido de desculpas? — ela deixa os ombros caírem ou pronunciar a última palavra.

— Desculpas? — eu realmente fico um pouco confuso.

— Eu tratei você muito mal naquele dia, te agredi, disse que te odiava. Você entende que não foi uma situação fácil não é? — ela olha rapidamente pra mim e abaixa a cabeça olhando para os próprios pés.

— Claro. Mas porque você está se desculpando? Eu poderia ter salvado a Sophi — olho pra ela esperando uma resposta.

— Eu também — diz ela. Levanta a cabeça e abre a bolsa ao seu lado, tirando um celular. — Naquele dia estava com muito trabalho, então deixei meu celular desligado. No dia seguinte ao nosso último encontro, eu estava checando a caixa de mensagens e me deparei com essa — ela toca no play do celular e o som da voz da Sophi aparece:

"Mãe preciso conversar com você, com alguém" — ruídos de choro. —"Minha cabeça está uma bagunça eu não aguento mais toda essa dor." — Sinto angustia e urgência na sua voz. A mensagem acaba.

— Se o meu celular estivesse ligado e eu atendesse, talvez eu também pudesse ter salvado ela. Mas o fato é que nós nunca vamos saber ao certo — seus olhos castanhos encaram os meus. — Ela poderia ter desistido, ou, poderia ter seguido em frente, ou, poderia ter vindo há acontecer nos dias seguintes. As hipóteses são muitas.

— Mas acho que as minhas palavras foram um incentivo e tanto não? — sinto a dor do remorso começa a inchar.

— Suas palavras assim com meu silêncio, talvez tenham sido um gatilho num dia muito ruim. Mas nós não fizemos isso com intenção de machucá-la, e não acredito que tenham sido esses os motivos para o que ela fez.

Ela guarda o celular e retira da bolsa um caderno de capa dura, rosa, escrito Sophi com adesivos coloridos.

— Pega— ela estende o caderno pequeno na minha direção. — Era o diário da Sophi. O encontrei no quarto dela há umas duas semanas. Eu li e acho que ela não se importaria se só você lesse também. Claro, se você não se sentir confortável pra...

— Não, tudo bem. Eu quero entender melhor como ela estava se sentindo — respondo de imediato pegando o objeto da sua mão. — E como eu faço pra te devolver?

— Você pode me ligar, não quero perder o contado com você. Não dá para mudar os fatos, já aconteceu, tudo que nos resta agora é tentar perdoar a nós mesmos — ela limpa rapidamente uma lágrima que escorrega do seu olho. — Você era especial para ela, então também é especial para mim — ela respira fundo e se levanta pegando a bolsa. — Tenho que ir trabalhar, mas espero que possamos contar um com outro para conversar nos dias mais difíceis.

— Com certeza.

Ela faz um sutil aceno de despedida e começa a caminhar na direção a saída do parque.

Inspiro e expiro lentamente, só então abro o diário e começo a ler página por página. Vou conhecendo a Sophia como nunca havia a conhecido antes, entendendo melhor suas dores, sua sexualidade, os motivos por trás do seu peso, seus traumas, angustias, segredos, seus momentos felizes, onde eu e sua mãe estamos presentes em quase todos os poucos que ela relata, e suas ideias sobre a vida. Mergulho no seu eu mais intimo, sorrio e choro sozinho sentado de baixo do carvalho gigante, enxergando a garota forte, sensível, triste e incrível que ela era. Uma pena que eu não tenha visto mais além da imagem de menina tímida, durona e de humor variável, que ela demonstrava. Uma pena ainda maior que ela não se enxergava da maneira que ela realmente era. Maravilhosa.

Termino de ler todo o diário quando o dia começa a ceder o seu lugar à noite. Sophi não deixa claro os motivos quais a levaram a tirar a própria vida, mas tenho para mim, após ler suas palavras, que não foi por uma única razão. Depois de ler seu diário, consigo deduzir as coisas mal resolvidas desde os grandes traumas que ela nunca me contou, a coisas pequenas que pareciam ser insignificantes, mas que no fundo a magoavam. E todos esses acontecimentos juntos, foram se mutuando um sobre o outro como pólvora em cima de pólvora enchendo um recipiente.

O fogo que acabou explodindo tudo foi provavelmente um dia muito ruim. Não sei exatamente o que aconteceu nesse dia, ela não relata, mas sei que tinha uma faísca minha no meio, mesmo sendo sem intenção.

Não quero julgar Sophi por ter ido embora, só ela sabia o que realmente se passava dentro dela. Não quero mais ficar hipotetizando os vários "e si" que não fazem nada além de trazer mais sofrimento. Então aceito o triste fato de Sophia ter partido, assim como eu espero que ela e eu, possamos me perdoar algum dia.


Eu preciso conversarOnde histórias criam vida. Descubra agora