PERIGOSO

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Perigoso

O  senhor de bigode branco no balcão do bar pede um pingado e vê a notícia na televisão, sorri de maneira enviesada para o recém chegado, puxa assunto passando a falar mal do governo.
Um assunto inócuo nessa época pois  a maior parte da população odeia o atual governo com menos de 2% de aprovação.
A conversa flui normalmente até o  senhor no balcão ver o objeto na mão do homem. Seu rosto se contorce em um estranho esgar e ele interrompe a conversa, indo para o outro canto do bar.
O outro  não se incomoda. É jovem ainda.
Seu rosto lembra algo do oriente médio, talvez libanês, mas é miscigenado com brasileiro, isso é certeza.
Ele toma seu café e paga no caixa que o olha com desprezo ao perceber o objeto em suas mãos, mas não fala nada.
Saindo para a rua, o jovem caminha rapidamente para a estação de trem, os transeuntes com seus celulares de última geração não tiram os olhos da tela de cristal líquido e o jovem se desvia deles com um quê de divertimento no rosto.
Para na estação do Ermelino Matarazzo e paga digitalmente com seu chip implantado no pulso a sua  viajem, cobrada de acordo com o destino, de maneira que quem viaja uma distância menor, paga menos.
Socialmente justa.
Atravessa a barreira de energia que não permite a passagem de quem não pagou a tarifa de 1,25 créditos. O segurança percebe o objeto em sua mão e corre rapidamente na sua direção.
- Ei. Ei rapaz, qual seu nome? Não pode entrar com isso não.
O jovem para com o rosto enfadado.
- Eu chamo Felipe. É contra a lei?
O segurança para. A confusão estampada no rosto.
- Não. Não é... Coooontra a lei. Só é... Estranho.
O jovem sorri, satisfeito.
- Então, com licença.
Pega o trem movido a antigravidade que não emite ruído ou resíduos que poluam o meio ambiente e se senta no assento disponível às pessoas de sua faixa etária.
Um senhor no banco de idosos a frente, sorri quando ele entra, mas ao notar o objeto  se escandaliza e sai do vagão.
O rapaz dá de ombros e não liga. Abre o objeto em seu colo e fica absorto com seu conteúdo.
Não percebe a senhora que o fita com ar de contrariedade, o casal que ri apontando as telas de cristal líquido filmado sua ação incomum.
Uma mãe puxa violentamente a mão da criança que, curiosa, tentou tocar no objeto, fazendo com que essa chore.
O rapaz de ascendência árabe não percebe também quando três nacionalistas, entram no enorme vagão e começam a percorre-lo de ponta a ponta.
Param próximo a ele, observando o objeto. Seus olharem exalam o puro ódio dos extremistas fanáticos.
Logo se aproximam com suas botas e camisetas verde-amarelas da seleção de futebol brasileira.
- Eaê Mohamed? Fecha essa merda e olha pra gente.
O rapaz levanta então a cabeça e percebe, assustado que é com ele.
- Er... Eu chamo Felipe. Sou brasileiro. Não estou fazendo nada contra a lei.
Olha em volta procurando algum apoio, mas o povo em volta olha fixo para a frente, ignorando a cotenda.
- Essa merda do caralho! Sabia que tem família aqui, seu Mohamed do caralho?
Um tapa derruba o objeto no chão.
Felipe esboça uma reação.
- Ei! Meu... - um tapão forte lhe cala a boca.
Os rapazes sacam bastões energéticos para a prática saudável de esportes, ajustando a densidade para metal e começam a bater impiedosamente no jovem, que tenta se proteger cobrindo a cabeça com ambas as mãos.
Um passageiro, primeiro timidamente, saca seu equipamento de áudio e vídeo e começa a gravar. Alguém fala algo como "olha o que esse merda tava carregando", o que apenas serviu de incentivo para mais pancadas. A estação de Atibaia se aproxima e um dos nacionalistas pega com nojo o objeto. Começa a arrancar seu conteúdo, destruindo-o sob uma chuva de aplausos no vagão.
Uma pessoa não identificada conecta a polícia, alertando da agressão, que chega em minutos e espera os nacionalistas na saída da estação, levando-os algemados com sorrisos de satisfação pelo que fizeram.
O rapaz machucado é atendido pelos paramédicos e os restos do objeto que lhe é precioso, voam com o vento frio pela plataforma.
Um faxineiro recolhe um fragmento, olha para os lados e enfia no bolso.
À noite o video já é viral.
Grupos de Direita defendendo a surra pelo seu uso enquanto a Esquerda defende a liberdade do seu uso público ou privado.
O faxineiro acompanha as notícias virtuais com atenção. Logo desliga os canais, vai até seu uniforme e retira o fragmento do objeto destruído.
Lê o título da página rasgada do livro: Sidarta.
Ele sorri e esconde a página debaixo do estrado da cama, onde ninguém pode encontrar. Lembra-se como era bom ler

PERIGOSOOnde histórias criam vida. Descubra agora