RESENHA: O mito de Orfeu

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* Esse texto foi usado em uma prova de Cultura Clássica, durante o primeiro semestre de Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 2017. O presente texto recebeu nota 10.

FERRY, Luc. "A Sabedoria Dos Mitos Gregos - Aprender a Viver II", Ponto de Leitura, 2012. Páginas 184–190.

No texto do filósofo francês Luc Ferry, pode-se apontar diversos aspectos de fácil percepção, sejam eles positivos ou negativos. Primeiramente, há um fator gritante em sua produção textual: Ferry deixa explícita sua opinião sobre o mito em diversos pontos de sua escrita. Tal abordagem pode espantar leitores que prezam a imparcialidade em um texto que consideram informativo. O autor também faz questão de enfatizar que a morte está na ordem dos seres humanos, portanto, não pode ser contornada como Orfeu tentou fazer; pelo menos não sem causar uma desordem responsável por alterar o andamento do universo. Aponta, assim, que a morte deve ser simplesmente aceita e cada indivíduo deve preocupar-se apenas em aproveitar a vida (noção retomada no Arcadismo).

O autor faz constantes relações entre o mito de de Orfeu e a religião, afirmando que "é um dos raros mitos a ter marcado a religião cristã". Atribui esse fato à contradição entre o amor e a morte; além da relação que sustenta entre Jesus Cristo e Orfeu. Ferry pode ter pecado nessa parte, pois diversos outros textos bíblicos poderiam ser relacionados ao mito de Orfeu, mas ele sequer mencionou tal relação. Por outro lado, deixa claro que, ao contrário de Jesus, não foi possível para Orfeu vencer a morte. A ressurreição estaria assim fora de questão para Orfeu, ou melhor, para sua amada Eurídice.

Há uma retomada da história de Orfeu, a qual não foi bem colocada antes de um parágrafo de intervenção ("Mas não vamos nos antecipar e, antes de entrar no principal da história, vejamos um pouco mais de perto com quem estamos lidando", p. 185). Ferry dá uma leve pincelada pela vida de Orfeu antes de seu encontro com Eurídice. É um dos pontos mais positivos em seu texto, pois situa o leitor que não apresenta muitos conhecimentos sobre mitologia grega. Ao apontar a aparição da lira no mito, a qual foi dada para Orfeu por Apolo (tido por muitos como seu pai), Ferry relaciona a criação de duas novas cordas no instrumento com o número de musas, nove divindades. Relaciona também seu iminente talento com sua filiação, pois atribuí-se a Calíope, musa da poesia e rainha das musas, a posição de mãe de Orfeu. "Ele teve então a quem puxar" (p. 185), esse é um trecho meramente de opinião, reforçando o que foi apontado anteriormente.

Ao contar um pouco sobre a história de Orfeu, o autor menciona que o personagem mitológico foi um dos 50 Argonautas (tripulantes do Argo) que atenderam ao chamado de Jasão para buscar o velocino de ouro, mas, infelizmente, seu texto não se aprofunda muito nesse assunto, exatamente como diversos autores que mencionam Orfeu fazem. E após as explicações sobre quem é de fato Orfeu, Ferry volta ao motivo para Orfeu ir ao Mundo Inferior (ou infernos, como ele mesmo diz). Usa a seguinte frase para retomar o assunto anterior: "Voltemos, porém, ao que vai levá-lo aos infernos" (p. 186). A frase encaixa-se perfeitamente no texto e serve tanto para situar o leitor sobre o momento do mito que está em discussão, quanto para separar a parte introdutória de seu ápice.

Então, novamente, o autor menciona que Orfeu se apaixona por Eurídice. Dessa vez, aprofunda-se mais em tal ponto do mito, adicionando uma informação importante: Eurídice é apontada por muitos como uma ninfa, espírito da natureza. Ferry não deixa escapar sua impressão e a de diversos outros autores sobre Orfeu: que o herói não vê sentido na vida sem Eurídice e que está disposto a fazer de tudo para ficar com ela. Assim, fica fácil entender como ele tem coragem de enfrentar criaturas, deuses e a própria morte. Porém, há uma pequena falha nessa parte do texto; Ferry esquece de apontar que Orfeu só consegue atingir feitos maravilhosos por ter o sangue divino correndo por suas veias.

Ferry faz uma ótima comparação entre as versões de Virgílio e Ovídio sobre o mito de Orfeu, apontando sempre qual versão está relacionada a qual poeta clássico. Por outro lado, o filósofo francês parece não ter ciência dos outros possíveis fins para Orfeu. Fica claro que não há divergências sobre o fato de Orfeu ter morrido pouco depois de fracassar em sua missão, mas não o modo como morreu. Alguns concordam com Virgílio, outros com Ovídio; Ferry não parece ter uma posição sobre qual o final mais plausível. Por outro lado, ele deixa de mencionar algumas versões sobre a morte do herói que poderiam enriquecer o texto. Um exemplo é a má relação existente entre Orfeu e Dionísio (há várias versões para o motivo de uma desavença) que fez o deus mandar suas mênades (seguidoras selvagens e fiéis de Dionísio) estraçalharem o poeta. Ele também falha ao mencionar apenas uma das diversas interpretações para o mito.

O texto é bem estruturado, apesar das falhas, garantindo uma leitura de fácil entendimento e informativa. A parte informativa é enriquecida quando Luc Ferry menciona que o mito foi substancial para a criação de uma religião secreta, a qual foi denominada orfismo. Talvez as constantes relações tornem o texto um pouco cansativo para alguns leitores, porém, a falta de tais relações não fariam o texto parecer atemporal e contemporâneo ao mesmo tempo. Dá para inferir-se que a construção textual poderia apenas ser impulsionada à perfeição se consideradas algumas modificações. Ainda assim, Ferry conseguiu criar um texto interessante com começo, meio e fim, nada mais do que se deve esperar de um escritor, principalmente quando está recontando um mito.

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