A vida é difícil. Somos obrigados a enfrentar peças e pegadinhas que são postos a nossa frente. Na maioria das vezes, fracassamos e somos impedidos de nos recompor. Porém, o perdão está aí para esquecermos o erro e fazer com que tudo seja diferente. Mesmo assim, a vida continua sendo confusa. Para pessoas comuns, vida é apenas um termo de existência, elas a possuem, mas não investem em nada muito útil. Para nós, os Reais, é a chance de fazer algo importante e entrar para a história. Mesmo que fazer história signifique matar familiares e trair aliados. Quando pequena, lia sobre meus antepassados e imaginava se poderia fazer algo tão grandioso ou semelhante com o que já havia sido feito. Hoje posso declarar que fiz o possível e o impossível para proteger meu povo. Seguir os passos dos Reais é complicado, qualquer erro pode significar a morte. O modo de vida é de fato glamouroso. Viciante para uns, morte a cada dia para outros. Eu precisava de algo a mais para minha vida, necessitava conhecer pessoas com histórias inspiradoras, pessoas além dos muros do palácio. E se minha vida estiver prestes a acabar neste momento, ficarei feliz em saber que a monarquia jamais será a mesma. Afinal de contas, fiz com que os Reais fossem extintos da história. Se minha morte significa a existência de um mundo melhor, estou pronta para partir. O que tenho a perder?
Alguns anos atrás...
A claridade entrando pelas janelas me fez despertar. Enquanto observava o sol, senti a brisa fria de Allegra invadindo meu quarto, fazendo as cortinas brancas de seda balançarem. Fecho meus olhos e me mantenho concentrada durante alguns minutos, até que ouço batidas na porta. Eu preciso de mais um tempo para mim, não respondo e volto a relaxar. As batidas continuam, até que vejo a porta abrir.
- Senhorita, acorde. - Kiara me sacode de modo delicado. Se sua intenção era acordar alguém, ela havia de falhar.
- Kiara, já conversamos sobre essas formalidades entre nós. - digo, enquanto abro os olhos lentamente. Ela permanece quieta por uns instantes e volta a falar:
- Sim, senhorita, eu compreendo. Mas...
- Mas nada, não precisa me chamar assim. Apenas na presença do meu... - olho para frente. - Pai!
Ele lança um olhar de reprovação, mas logo sorri. Levanto e corro até ele, abraçando-o.
- Bom dia, querida. Como está minha filha número dois? - ele caminha comigo até a cama e senta-se ao meu lado. Minha criada deixa a bandeja de café da manhã na mesinha de centro e se retira, nós deixando a sós.
- Estou bem. Sinto-me disposta hoje. - digo, olhando em seus olhos.
- Isso é bom, pois tenho muito trabalho para você. - ele se levanta e ajusta o terno.
- Pensando bem, acho que estou com uma pequena enxaqueca - ele sorri e vai em direção a porta.
- Boa tentativa, Allegra - meu pai sai do quarto, dando uma leve batida na porta. Vou até a mesinha e levo a bandeja até a mesa da sacada. O dia está bonito, o céu tão límpido, é algo que não se vê todo dia em Allegra. Pássaros vermelhos surgem, dando contraste no céu. Eles voam em direção ao sul, sumindo da minha vista. Me concentro na bandeja, pego uma maçã e me levanto, mordendo-a. Observo os muros do palácio, tão grandes, tão seguros. Eu apenas queria fugir daqui. Amo minha casa, mas sinto que devo explorar mundo afora, e permanecendo aqui, não irá acontecer. Olho para o jardim dentro do labirinto de grama e vejo um rapaz plantar alguma tipo de flor, seria rosas? Margaridas? Tulipas?Enquanto deslizo escada abaixo, observo detalhadamente as paredes do palácio, todas em tons claros, um meio termo entre dourado e creme. Os corredores mais estreitos são decorados com castiçais de ouro e flores em grandes vasos. Lustres de cristais pertencem aos salões e escadarias. O teto é caracterizado com arte barroca. Cada cômodo do palácio possui alguma especificação do ambiente. Na sala de jantar, pode-se observar pequenos talheres ilustrados no teto. Minha casa é encantadora e elegante, mas não aproveito nem a metade. Gosto passar minhas tardes no jardim, no telhado, em meu quarto. Não reclamo do que possuo, apenas acho tudo exagerado. É o lugar mais lindo que estive, isto é fato, entretanto, as vezes não parece ser o meu lar com tantos soldados e criadas me vigiando. Ao menos posso apreciar os belos e jovens guardas do palácio. Sempre tão musculosos, de dar inveja a outros homens. Me perco em meus pensamentos até que percebo que já estou na enorme porta que dá acesso ao jardim. Os soldados fazem referência e abrem, fazendo meu cabelo dar uma leve mexida com a brisa. Ando calmamente até meu lugar favorito em todo o palácio, um pequeno labirinto, onde, no centro dele, são plantadas rosas coloridas e tulipas, minhas espécies de flores favoritas.
A entrada é feita como um arco de flores, dando continuidade entre as passagens, que chega até a ponte no qual dá acesso ao centro do labirinto, onde há um pequeno lago em torno dele, com alguns peixes e plantas aquáticas, um banquinho e dois varais de luzes, um em cada ponta do jardim, fazendo um grande X. Este lugar, de longe, é o mais bonito do mundo, mas a noite, quando há vagalumes vagando pela escuridão, o meu jardim se torna mágico. Qualquer pessoa que entra aqui, perde-se nos próprios pensamentos. Sempre que preciso de abrigo, conforto, ou até mesmo espairecer, não penso em outro lugar a não ser esse.
- Desculpe incomodar, senhorita, já estou a me retirar. - uma voz rouca me assusta. Olho para os lados na procura do dono desta bela voz. Assim que nossos olhos se cruzam, ele recua, me fazendo revirar os olhos. Sei que sou princesa, mas porquê, afinal de contas, todos têm medo de mim? Dos Reais? Realmente somos pessoas acima de qualquer classe, mas também somos humanos, também temos sentimentos.
- Ah, de maneira alguma você iria me atrapalhar. - sinto que meu comentário soou de forma oferecida, mas não ligo, sua presença não me incomoda.
- Perdão?
- Quero dizer, pode continuar a fazer seu trabalho. Prometo ficar quietinha e não atrapalhar. - ele vai em direção às rosas vermelhas.
- Mesmo se a senhorita atrapalhasse, não seria um incômodo. É um privilégio estar em sua presença. - o jardineiro volta a cuidar das rosas. Se cabelo tem uns leves cachos ondulados, fazendo-o ter um perfeito caimento. Seus ombros são largos, e seus braços definidos, sendo exibidos através da blusa de manga que foi dobrada até os cotovelos. Seu macacão jeans sujo e velho dá a impressão de ser um homem selvagem, mas ao mesmo tempo, carinhoso e cauteloso.
- Então ficarei feliz em permanecer aqui. Quem sabe nós não conversamos um pouco e assim, o tempo passe mais rápido. - digo, e ele se vira, esboçando um pequeno sorriso no canto da boca, exibindo suas convinhas. O arrepio em minha pele foi estantâneo. O modo no qual me olhou, fazendo-me mergulhar em seus lindos olhos azuis, me fisgou.Após algumas horas, pude concluir que sua timidez era de fato notável, mas sua simpatia superou qualquer defeito. Ele me tratou como se já fossemos íntimos, mas não perdendo o respeito por eu ser quem sou. Geralmente, não sou de muita conversa com criados, mas de alguma forma, este me cativou como jamais haviam feito antes.
- Que impressionante. O senhor fez um ótimo trabalho. - digo ao me aproximar das rosas. Ele para ao meu lado e sorri.
- Me alegra saber que a senhorita gostou - ele para e permanece quieto, parecendo estar pensando em algo. - Perdoe-me se for indiscreta minha pergunta, mas a senhorita seria a Princesa Allegra? - seus olhos exibem certa preocupação, fazendo-o corar.
- Não sabe quem sou? - arqueio as sobrancelhas com tal pergunta.
- É que sou novo aqui e não conheço quase nada nem ninguém. Eu morava no interior com minha tia.
- Tudo bem, foi apenas uma pergunta inesperada. - sorrio, tentando acalmá-lo. - Sim, sou eu.
- Perdoe-me, vossa alteza, não quis deixá-la desconfortável - ele responde com certo arrependimento na voz. - É uma honra conhecê-lá. - meu mais novo amigo faz uma referência. Ele realmente me surpreendeu com esta pergunta, mas uma simples e boba pergunta como esta, fez meu dia ficar melhor.
- É um prazer conhecê-lo... - estico minha mão e ele a beija. Seu toque é suave e seus lábios macios. Uma sensação estranha tomou meu corpo e me fez desejar o encontro desses belos lábios nos meus. Não sei exatamente o que pensar sobre este homem, mas uma coisa ao certo eu sei, ele me causa fortes emoções.
- Matteo - ele completa, sorrindo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Última Herdeira
RomancePela primeira vez na minha vida, eu sei quem sou e o que quero. Apegos são perigosos. Eles provam que nos importamos com alguma coisa, ainda mais com quem nos preocupamos. Afinal, sem eles não haveria do porquê lutar. Isso faz a vida valer a pena. E...