PRIMEIRA PARTE DO CAMINHO

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É noite de quinta-feira. E estou com a minha namorada no ponto de ônibus vazio.

É um momento raro, de certa forma. Pouco nos vemos durante a semana. São Paulo é uma cidade gigante e atolada; qualquer lugar é longe demais. Ela mora em uma zona, eu moro na oposta. Mas nessa quinta-feira, decidimos nos encontrar no meio do caminho.

Temos nossas próprias vidas, além disso. Ela como professora do primário e eu faço estágio em jornalismo. Então, o tempo que temos para nos encontrar é escasso e aproveitamos como é possível. 

Está na hora de nos despedirmos. Ou estará, assim que nossos respectivos ônibus chegarem. Mas enquanto isso, ela continua a falar e ocupar cada segundo daquele encontro com sua presença, sua voz, sua vida de modo encantador. Nunca nos calamos. Mesmo quando o assunto é desagradável. 

- Um pai veio reclamar de mim na escola. – Ela conta e coloca uma mecha do cabelo escuro por trás da orelha. – Disse que chegou ao conhecimento dele que uma das professoras está incentivando comportamento homossexual. 

Lá vem... Aquela velha história que já conheço. Já ouvi e já vivi.

O momento em que alguém descobre que você é lésbica. 

- Um dos meninos me perguntou um dia em classe se eu tinha um namorado e eu respondi a verdade, ué. Disse que tinha namorada. – O tom dela tem simplicidade. Talvez esperança. – Não vejo motivo para mentir. É melhor não tratar como tabu, não é?

Sim, é melhor, porém continua sendo tabu. Não dá para apagar a essência de tabu.

- Amor, sua burrice é admirável. – Digo, rindo pelas narinas. Pego suas mãos por entre as minhas com carinho. – É claro que isso ia dar merda. Chega nos ouvidos dos pais em dois minutos e eles logo já distorcem tudo... – Meu triste realismo reverbera por entre nós duas e ela se põe cabisbaixa. Tento consertar, então: - Mas você está certíssima. Ideologicamente falando, não tem que esconder nada!

- É, mas falando de forma não ideológica... Tem sim. – Um suspiro. Tristeza e arrependimento. Desesperança. E ela explica: - O diretor da escola disse que eu não posso mais falar sobre minha vida. Disse que eu não posso me assumir enquanto trabalhar lá. 

Ah, mas é claro... Claro que ele não quer que ela se assuma. 

Ninguém quer que lésbicas se assumam. Ninguém quer nos assumir lésbicas. 

- O mais estranho é que eu te levei na festa de fim de ano... Ele já te conheceu.

Sim, ele já me conheceu. Muitas pessoas já me conheceram. Mas ninguém assume que somos lésbicas. Afinal, nós pouco existimos. "Amigas íntimas" já ouvi algumas vezes. Já li várias vezes em revistas e jornais. Mas a palavra "lésbica" pouco leio. 

- Ele é claramente estúpido. – Respondo, descontando minha frustração. A verdade é que não gosto dele. Ele fala com mulheres e homens de forma diferente. Eu reparei. Tinha um tom de quem sabe mais quando se dirigiu a mim na festa dos funcionários. Quis me explicar sobre a política atual como se eu não tivesse capacidade de entender por mim mesma. 

Eu produzo matérias sobre política. É minha função no estágio.

Mas mesmo quando eu disse isso para ele, me respondeu com prepotência alegando que eu era apenas uma estagiária. Então, minutos depois, o peguei elogiando o estagiário de sua escola. Garoto honrado que optou por trabalhar no ensino fundamental; lugar típico de mulher. Me toquei naquele momento que ele era mais do que "apenas" um estagiário. Mas a mim, cabia a palavra "apenas" antes do meu cargo.

Bom, pelo menos agora deixei de ser "apenas" uma estagiária. Sou a estagiária lésbica.

- Tá tudo bem, eu posso fazer isso. – Minha namorada afirma em voz alta. Mas eu sei que está dizendo para si mesma. 

Eu seguro sua mão e puxo para os meus lábios, depositando um pequeno beijo nas costas da mão esquerda. E então, beijo a direita para que ela não ache que a amo menos. Eu amo todas as partes da minha namorada. Igualmente.

Ela sorri, eu sorrio. Um ônibus se aproxima e nós prestamos atenção para verificar se era algum dos nossos. Mas não era.

No entanto, agora reparo em um homem que também aguarda no ponto. Ele não estava ali quando chegamos, mas agora está. E agora ele nos encara com pouca discrição. Ele não faz questão de disfarçar... Ele não precisa disfarçar. Quem precisa somos nós.

Soltamos as mãos imediatamente. Eu dou um pulinho para a direita, ela para a esquerda. Agora tem um palmo entre nossos corpos; perto o suficiente para nos darmos segurança, mas longe o suficiente para sermos apenas amigas íntimas. É o susto, é o medo, mas a verdade é que pouco adianta tentarmos disfarçar nossa relação. Ele já sabe.

Não consigo medir em seus olhos quais suas intenções, quais seus pensamentos. Ele poderia ser um homofóbico. Poderia desejar nossa extinção. Mas homens também gostam de assistir o espetáculo da vida lésbica, como se tivessem acessado um site pornô.

Eles pregam seus olhos em nós, nos desnudam, nos julgam, e eu sinto o percorrer dessa mente asquerosa pela minha pele. Sinto a atenção negativa me corroer.

- Que desperdício. - Ele murmura; o olhar fixado em nós. Ou melhor, em nossos corpos. Desliza seus olhos pelo meu decote, sobe pela pernas expostas da minha namorada, avalia o pedaço de carne a que somos reduzidas. Pedaços de carne podre.

Afinal, "desperdício" é como somos definidas. Não prestamos porque não servimos para sermos comidas pelos senhores do mundo. Lixo humano. Ou talvez somente lixo, já que deixei de me sentir humana há muito tempo. Já deixei de ser tratada como humana há muito tempo.

Será que algum dia já fui? Pelo que sei, não nasci pessoa. Nasci mulher.

- Amor, olha! Meu ônibus! – Ela diz, interrompendo meu nojo.

Salvas pelo ônibus! Ele chega com destino à Liberdade. O bairro, claro, pois liberdade como conceito de vida é algo que não temos.

Ao menos, minha namorada estará a salvo; diferente de mim, que ainda terei que permanecer no ponto e aguardar meu próprio ônibus. Mas tento focar novamente na boa notícia. "O amor da minha vida vai ficar bem e chegar rápido em casa", penso eu.

Mas pensei errado.

- Volta com segurança. – Eu digo e ponho sinceridade em cada sílaba. E damos um beijo. Rápido e discreto. Temos que ser discretas.

Mas não importa mais. O homem já sabe. E além disso, ele agora está ocupado demais subindo em seu ônibus. Aquele mesmo ônibus em que minha namorada vai entrar.

E eu a vejo subir atrás dele sem poder dizer nada. Ela tem que ir embora, mesmo que isso signifique dividir o ônibus com o homem do ponto que não parou de nos encarar. E isso me deixa paranoica... Vejo o ônibus partir, minha namorada sumir de minha vista, e me pergunto se ela ficará realmente bem. 

Tenho que me preocupar por ela e por mim agora. Separadas.

Toda vez é o mesmo aperto no coração. Tenho medo quando estamos juntas, mas tenho ainda mais medo quando tomamos nossos próprios caminhos. Temo por ela, temo por mim, temo por ser mulher, temo por ser lésbica, temo duplamente. 

Vai que alguém viu, vai que alguém não gostou do que viu, vai que alguém gostou do que viu. Tudo parece perigoso e de repente me dá vontade de ser invisível novamente.

Mas a capa de invisibilidade lésbica funciona da pior maneira possível. Nos apaga da mídia, nos apaga das questões de saúde, nos apaga da história, mas nunca das ruas. Nunca no imaginário masculino. 

Continuo sentada no ponto de ônibus. Agora estou sozinha. E me sinto ainda menos segura do que antes... Não que duas mulheres pudessem fazer grande estrago, mas ao menos a voz doce da minha namorada me tirava os medos da cabeça. 

Olho para o relógio na avenida. 00h15. Não é a toa que as ruas estão vazias.

Penso que se acontecesse algo comigo agora, com certeza me culpariam pela manhã. Já consigo ver os comentários odiosos na matéria que narra mais um estupro e homicídio de uma jovem de 24 anos na calada da noite. Me culpam por estar sozinha na rua à essa hora. 

"O que ela fazia naquele ponto de ônibus tão tarde?"

Esperava o ônibus e cultivava pensamentos mórbidos.

Jornada Dupla - Versão CompletaWhere stories live. Discover now