Um carro estaciona, vagarosamente, perto do ponto de ônibus.
A tensão retorna para minha corrente sanguínea enquanto a janela do motorista se abaixa revelando um homem. Ele coloca a cabeça para fora, olhando em minha direção. Não tinha como ser na direção de qualquer outra pessoa. Eu estou só.
Mesmo assim ignoro. Finjo que não é comigo.
Até que ele decide ser mais direto com as suas intenções e grita:
- Você chamou um táxi?
Não, não chamei. Não tenho dinheiro nem coragem para isso.
Já houve um tempo em que eu escolheria pegar um táxi à um ônibus numa noite como essa, acreditando que seria mais seguro. Mas desde que minha colega de faculdade relatou ter sido assediada por um taxista, eu mudei minha concepção de "seguro".
Ele começou a desviar do caminho com desculpas esfarrapadas e cantadas asquerosas. Por sorte, ela conseguiu fugir.
Ou melhor, não "sorte". Não há como usar essa palavra em um caso como esse.
Assim como eu, ela também fazia questão de deixar a porta destrancada... E cogitava a ideia de se jogar para fora do carro em movimento na esperança de que fosse menos doloroso do que permanecer dentro dele.
Deu certo. Mulheres são experts em fuga.
Com tantos medos me passando pela cabeça, me limito a responder um "não" fraco, mas forte o suficiente para mostrar minha decisão.
- Uma moça bonita como você não devia estar sozinha a essa hora esperando o ônibus! – Nem foi preciso acessar uma matéria sobre estupro para ver esse tipo de comentário. Esqueço-me algumas vezes que os homens não precisam da proteção e anonimato que a internet oferece. Eles já são protegidos pelo sistema. – Não quer uma carona, ein? Pode ser seu dia de sorte.
Me levanto sem pensar duas vezes. E quando dou por mim, já estou caminhando a passos largos para longe do carro. Minhas pernas são curtas, mas aprendi a correr pela necessidade; não dá para andar por São Paulo sem apertar o passo. Me sinto como uma gazela, uma presa fácil, que bota toda sua esperança de sobrevivência na própria agilidade. Corro pela minha vida.
Conforme me afasto, ouço ele rugir por trás de mim.
- Mal-educada! Ingrata! – Ele grita, insatisfeito com a minha desfeita. Como ousa uma mulher desprotegida recusar sua generosidade? Seu ato heroico? Ela só pode ser uma... – Vagabunda!
O discurso muda muito rápido. Mas não fico para ouvir o resto.
Corro mais e mais. Sinto meus músculos serem repuxados ao seu limite, o suor escorrer pela minha pele e encharcar minhas roupas, meus pulmões arderem implorando por uma pausa. Mas não há como parar.
Não paro de correr até alcançar o ponto de ônibus seguinte.
O oásis em meio ao deserto cruel: a única outra pessoa no ponto é uma mulher.
Eu me aproximo, desarmando minha postura de guerra, e respiro aliviada. Ela afrouxa a mão que antes apertava a bolsa com força e me encara de volta. Enxergo calmaria nos olhos turbulentos. Ela sorri, eu sorrio.
Não trocamos palavras. Não é necessário. Nossa pura e simples presença como mulher já basta para que sejamos envolvidas por uma camada de segurança. Eu não preciso saber seu nome para sentir o que ela sente nessa noite solitária. E ela não precisa saber quem sou para entender que somos iguais perante ao mundo.
Sororidade? É esse o nome da empatia feminina que nos une?
Não importa. O que importa é que juntas somos mais fortes. Nós por nós.
Torço para que a vida seja gentil e nos permita entrar no mesmo ônibus. Não quero deixa-la para trás. E não quero ser deixada novamente. Penso que se essa coincidência já aconteceu uma vez, não torna impossível uma segunda, certo?
Errado. Não torna impossível, mas torna improvável. A vida não é muito justa.
Meu ônibus finalmente chega, minutos depois, e me levanto sozinha. Percebo que tenho que me despedir da minha amiga de ponto de ônibus. Olho para trás, com um sorriso consolador, e ela retribui. Me deseja sorte com o olhar. É recíproco.
Quando a porta se fecha atrás de mim, me sinto culpada como se deixasse uma companheira de guerra para trás. Vejo nela a minha própria situação minutos atrás.
Perdão, minha querida parceira de gênero. Fique bem e volte com segurança.
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Jornada Dupla - Versão Completa
Short StoryO caminho de volta para casa pode ser extremamente desagradável. Para algumas pessoas mais do que para outras, com certeza. Creio que muitos de vocês não vivem as ruas como eu vivo. Por isso, te convido a me acompanhar nessa jornada e, quem sabe se...