Ao longe o som fúnebre de um órgão tocava mais uma melancólica e antiga peça clássica. Meus sapatos ecoam assim que piso no chão de mármore estampado com formas geométricas. Sigo em direção a saída para o jardim florido e vivo, totalmente o oposto daqui de dentro que é frio e vazio, e tão calculista quantos as doses de remédio. Desço alguns degraus e tiro meus sapatos na intenção de sentir a grama em contato com meus pés. Caminho por toda a extensão do local que agora está sendo iluminada pelos raios solares da manhã. Minha roupa branca atrai mais luz dificultando minha visão.
Sigo até o fim do jardim e empurro o portão de ferro trabalhado e moldado em formato de lanças. Mesmo não vendo ainda, é possível ouvir o barulho de água. A grama emana seu cheiro típico lembrando que provavelmente foi cortada e umedecida recentemente. Meus pés sentem pequenos incômodos por conta da poda, e meus dedos pálidos, mesmo contra sua vontade, acabam coletando alguns pedaços de grama que estão adentrando entre os vãos dos dedos. Caminho em pouco mais, de forma lenta e sem pressa, não quero voltar para o quarto agora. Observo as flores e as borboletas de cores únicas e quase irreais.
No meio de tudo isso finalmente encontro de onde vem o barulho da água. A fonte de gesso com uma escultura no centro, coberta por um fino e sutilmente transparente tecido, jorrava água cristalina e fresca. Aproximo-me curioso, contornando a escultura que ao que parece está de costas para mim. Meus dedos compridos e magros seguram nas pontas do tecido e puxam suavemente com medo de danificar o que possivelmente está ali embaixo. O tecido macio cai no chão ao lado da fonte revelando um anjo dourado. Meus olhos doem com a imensidão de seu brilho sendo refletido pelo sol, o lacrimejar passa conforme insisto em olhar para o objeto, e minha visão se adapta aos poucos a sua magnitude.
Um anjo esculpido em ouro, ou, pelo menos, é o que parece, estava bem a minha frente. Mas não era simplesmente um anjo gorducho estilo barroco qualquer, era o anjo. O mais belo de todos, o mais delicado de todos, o mais surpreendente de todos. A representação perfeita de um dos anjos que caíram do céu na divisão entre bem e mal. Ele era tão humano, porém ao mesmo tempo tão surreal. Seus cabelos continham alguns fios sutilmente ondulados, seu dorso e abdômen eram todos bem definidos. A perfeição com que foi talhado era possível ver até mesmo as veias no antebraço saltadas de forma sensual. Sua boca bem desenhada, seus lábios cheios, posso vê-los até mesmo rosados em minha mente. Seu corpo está nu, coberto por uma manta em volta de seu quadril.
Suas coxas definidas estavam a mostra me fazendo cogitar o quão belas elas seriam se fossem reais. Suas asas gloriosas se abriam como alguém que pede redação. As penas foram minuciosamente trabalhadas, era possível ver até mesmo os fios mais minúsculos da plumagem. Seu olhar esta sempre fixado no horizonte, e seu corpo estará para sempre escorado naquela pedra também de ouro. Seus dedos se estendiam em minha direção, como se me estendessem a mão. Em sua outra mão se encontrava uma rosa. Sua expressão era de sofrimento, como se ele houvesse sido preso no ouro por algo.
Sinto um palpitar repentino em meu coração, como um aviso, ou um vislumbre momentâneo do futuro. Algo no fundo da minha intuição me diz que estar aqui admirando algo sem vida não foi uma boa escolha. Como dois polos diferentes, sinto-me como um ímã humano sendo atraído em direção a ele. Desejo chegar mais perto. Minha curiosidade está no auge, em seu pico limite, implorando por mais informações sobre a escultura incrivelmente linda e intrigante. Enquanto olho para a borda da fonte tenho a sensação de ser observado. Ergo o olhar em direção a face da criatura inanimada e tenho a impressão de vela mexer os olhos. Balanço a cabeça negando e caminho me aproximando. Meus pés pisam na borda e sobem na mureta que contém a água ali dentro. Desço e adentro meus pés na água fresca, não muito fria. Não tenho controle sobre mim, apenas sigo como um peão em um jogo de xadrez, sendo comandado por algo maior.
O caminhar ali dentro é um pouco mais difícil por conta da água, porém agora estou de frente para ele. Ergo minha mão direita e a levo de encontro ao seu rosto brilhante. Começo o tocando pelo queixo e subo meu polegar que faz gestos sutis na bochecha bem desenhada. Minha mão se encaixa entre a curvatura do pescoço e seu maxilar. Seus lábios são tão tentadores, desejo... Beija-los, e isso soa tão errado e louco ao mesmo tempo. Ainda sinto o seu olhar sob mim a todo instante. Mas me recuso a desviar os olhos dos lábios tentadores e ter o vislumbre da loucura assim que imaginar seus olhos mexendo novamente. Eu sei que é psicótico, tanto estar imaginando uma escultura me olhando quanto estar levando meus lábios em direção aos dela para beija-la.
Parei antes de tocar os cheios e dourados lábios. Tento me afastar, mas sinto uma conexão com estranhamente diferente com ele. Como se toda sua luz pudesse ter roubado meu comando psicológico e minha sanidade.
"Beije-me"
Assusto-me de momento. Porém percebo que essa voz partiu do meu subconsciente. Estou na dúvida entre o sim e o não. É simples imaginar a resposta em outra situação. Eu poderia dizer um não a esse pedido e ir embora e nunca mais entrar aqui, porém o sim soaria tão mais doce em meus lábios que ao invés de responder eu apena ajo por impulso. Minha respiração embaçava o dourado brilhante dos lábios tão próximos. Toco meus lábios nos dele sentindo um calor irreal vindo de sua parte. Senti meu rosto aquecer como se houvesse sido flagrado praticando algo errado. Sinto-me pecador, impuro, condenado ao inferno só por estar beijando algo sagrado e religioso. Como se houvesse destruído o santo grau, ou queimado uma imagem sagrada.
Afasto-me de seus lábios com um palpitar descompassado em meu peito. Imagino sua imagem e junto com ela reafirmo a cada segundo que será um segredo entre nós dois. Ninguém nunca saberá. Um raio cortou os céus como se apontasse para mim e desmentisse meu pecado escondido. As nuvens cinza começaram a se juntar e fechar a luz solar que estava tão bela. Será essa a minha penitência? A morte? Olho para ele e lágrimas escorriam de seus olhos. Como um anjo inanimado pode chorar? Escuto o barulho familiar de algo se quebrando e logo em seguida o pulsar se um coração. Sei que não é o meu, pois além dele escuto mais um. Fixo meu olhar na escultura e a chuva começa a cair sobre nos.
Junto com ela o dourado começou a escorrer para a água da fonte. Como magia, todo o brilho escorria de cima dele. Caio de joelhos na água boquiaberto com a situação. Sua pele alva foi ficando notável assim que todo o líquido de ouro escorria de cima de seu corpo. Ele me olhava. Ele fechou e abriu suas gloriosas asas fazendo com que partículas de ouro voassem no ar conforme eram quebradas pela força do movimento. Elas eram tão brancas e gloriosas quanto ele. Seus lábios eram tão vermelhos e convidativos quanto imaginei. Em um movimento gracioso e sutil, com algumas partes de seu corpo ainda escorrendo o líquido dourado, o anjo de cabelos quase brancos de tão loiros ajoelhou-se a minha frente. Ele sorriu e senti que meu coração iria se quebrar com tamanha a beleza do ato. A mão que segurava a rosa foi estendida para mim. O único objeto de ouro que ainda restava era ela. Não consegui esboçar ao menos um agradecimento de tamanha a minha surpresa e choque.
- Meu sangue, suor e lágrimas. Meu corpo, coração e espírito. Você sabe que já são seus - Sua voz sutilmente sussurrada esboçou como uma promessa de amor. Como um simples selar de lábios foi capaz de atrair uma jura de amor eterno?
A chuva ficou mais forte. O barulho das gotas pesadas batendo na água parada da fonte seria relaxante em outro momento. Porém agora, soa até como algo assustador. Ele fechou os olhos e uniu seus lábios aos meus. Tão doces e quentes que não resisti e fechei os olhos saboreando o momento. Doces como chocolate, pêssego e creme. Mais uma vez o familiar barulho de algo quebrando me fez separar meus lábios dos dele em um movimento de susto. Ele sorriu. Talvez diabólica, talvez docemente, em meu momento de loucura eu não sei ao certo. Ao som de um raio seu corpo se quebrou como gesso, pedra, ou até mesmo como um castelo de areia desmoronado pelas ondas do mar. Meu peito doeu. Como ele se foi? Como eu pude me apegar tão rápido.
- Hyungwon? - Escuto a voz da enfermeira me chamando ao longe.
Olho para a água e ela está limpa e cristalina novamente. A rosa dourada e pesada ainda está em minha mão, como a única lembrança de segundos atrás. O tecido fino não está mais ao redor da fonte. Olho para os céus e o sol aparece atrás das nuvens que estão se dissipando mais rapidamente que o normal. Tudo está seco, com exceção do meu corpo. Olhou para as altas plantas e entre elas surge a enfermeira responsável pela minha ala.
- O que faz ai em Hyungwon? - Ela colocou as duas mãos na cintura - Será que vou ter de te vestir com aquela blusa da última moda de novo? - Ela usou um tom sarcástico me lembrando da minha velha amiga camisa de força. Neguei com a cabeça evitando falar, só assim me pouparia de mais perguntas por conta do meu tom de voz trêmulo - Então saia daí. O banho de sol acabou faz cinco minutos.
...
A rosa pesada está em minhas mãos. Observo-a com devoção e carinho. Estou sentado na mureta da sacada, o vento frio da noite me faz lembrar o vento que corria entre nossos corpos durante nosso beijo. Mais uma vez eu tive um surto, mais uma vez eu imaginei coisas que não existem. Tudo seria mais fácil se eu simplesmente escorregasse para fora da mureta e caísse no nada até chegar ao chão. Uma morte com um pouco de adrenalina seria algo suficientemente bom para um ser humano tão desprezível como eu.
- O que pensa que vai fazer? - Escuto a voz do anjo do jardim vindo de dentro do meu quarto. Viro-me e o vejo. Seus cabelos agora estão lisos, ele está vestido de branco, como um enfermeiro. E se for mais um truque da minha mente?
- Não quero vestir a camisa de força - É a única coisa que escapa dos meus lábios. Ele sorri o mesmo sorriso que me deu antes de partir. Ele caminha em minha direção e meu coração volta a pulsar freneticamente como antes.
- Me de sua mão - Ele estendeu-a como o anjo estendia. Talvez eu me arrependa dessa atitude, mas sai da mureta e entrei no quarto segurando em sua mão. Uma onda de eletricidade aqueceu meu corpo e meu rosto ardeu novamente. Todas as sensações voltaram com a presença dele aqui.
- É... É você? - Indaguei.
- Lembra-se da minha promessa? Meu sangue, suor e lágrimas. Meu corpo, coração e espírito. Você sabe que já são seus. Não entendo porque dúvida que sou eu.
- Você se foi da última vez.
Ele me puxou para seus braços. Deitei meu rosto na curvatura de seu pescoço e inalei seu perfume adocicado. Tive o vislumbre de seu sorriso diabólico novamente.
- E quem disse que nós existimos de verdade?
Sinto meu corpo leve assim que abro meus braços e solto a mureta. Ele desce de encontro ao chão. Minha visão fica turva antes mesmo de sentir alguma dor ou impacto. Porém, tão perto do fim ainda consegui ver meu anjo do mal sorrindo de forma perversa em minha mente me fazendo sorrir juntamente com ele no meu último suspiro de vida.
VOCÊ ESTÁ LENDO
2Won (One-Shot's) - Monsta X
FanficEste livro é dedicado única e exclusivamente para one-shots 2won (Hyungwon e Wonho) escritas por mim. Histórias sem nenhuma ligação uma com a outra, imaginando diferentes formas de um relacionamento entre eles.