A vida não parecia reservar grandes surpresas à Prímula. Sendo a mais jovem entre três filhas, ela estava destinada a viver em uma pequena cabana reservada do resto do mundo na floresta que cercava a grande cidade Eberdan, para cuidar de seu pai qua...
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Estava ficando louca. Definitivamente, estava ficando louca por acomodar um estranho — ainda mais um daquele tamanho — em seu tapete, diante da lareira onde o fogo crepitava, soltando faíscas ocasionalmente, que desapareciam no ar antes de atingir o chão. Prímula as observava, quase hipnotizada, enquanto evitava olhar para o perfil adormecido. Não, não adormecido, era mais como se ele tivesse desmaiado embora não pudesse ter certeza.
A princípio, havia acreditado que o errante havia sido atacado por animais na floresta, mas uma investigação rápida havia encontrado muito pouco sangue, a maior parte dele seca, assim como de cortes superficiais em suas mãos e pés. Além disso, seus pertences se resumiam a um odre vazio pendurado em sua cintura,não era um caçador. Não era nem mesmo um viajante perdido, a menos que tivesse sido vítima de um assalto, considerou, pensativa, seus olhos recaindo sobre ele novamente. Mais especificamente, sobre as marcas escuras em seus braços.
Prímula prendeu a respiração, relembrando o momento em que erguera as mangas largas da túnica que ele vestia — Para descobrir se estava armado ou coisa assim — e se deparou com a tinta escura que formava um desenho aparentemente abstrato, um intrincado de arabescos que se perdia da vista, desaparecendo em direção ao ombro. Havia mais deles no outro braço, obedecendo ao mesmo padrão de curvas sobre os músculos sobressalentes que não poderiam pertencer a um camponês.
Os pelos de sua nuca se arrepiaram ao imaginar que tipo de significado poderia ter. Tinha a vaga lembrança de uma história sobre prisioneiros que eram marcados na pele com os nomes de seus crimes, mas nunca vira um prisioneiro antes e nunca tinha viajado para mais longe do que a feira da cidade vizinha. Não queria considerar aquela possibilidade. Se o estranho fosse um criminoso, quantas maldades haveria de ter feito para que tivesse tantas marcas?
Estava ficando louca mesmo. Mas não podia deixá-lo lá fora para morrer, podia? Jamais dormiria novamente, pois sempre que fechasse os olhos, lembraria-se daquele olhar suplicante e das palavras que ele tentara dizer, mas que ficaram engasgadas antes que desabasse no chão. Apesar de sua aparência um tanto assustadora, seus olhos não eram os olhos de um moribundo. Eram profundos e escuros, cheios de uma vontade que poderia parecer intimidadora ainda que estivesse exausto demais para mover um dedo.
Ele tossiu, tirando-a de seus devaneios e fazendo seu estômago se apertar novamente. Era hora de lidar com ele. Aproximou-se de maneira hesitante, os dedos firmemente fechados em torno de um copo de barro. Ele tinha respirações longas e rápidas, como se tivesse acabado de percorrer um longo caminho em seus olhos, e voltou-se para ela assustado, sem reconhece-la.
Prímula parou, e ele parou também, olhando em volta com muito cuidado. Encarou o teto de madeira escurecido pela fumaça e o tempo, a lareira alta de pedra, a mesa e as banquetas que ocupavam o fundo da cabana, os sacos empilhados e os instrumentos de trabalho. Por fim, se voltaram para ela, atentos.
— Está tudo bem. Você está em minha casa.
Não tinha certeza do que ele viu em seu rosto, mas ele pareceu relaxar o suficiente para voltar a fechar os olhos. Seus próprios ombros relaxaram em resposta e ela voltou a se aproximar, mais confiante quando estendeu o copo para ele.
— Beba. É água.
Ele se inclinou em direção à sua mão, os olhos fixos nela, até que estivesse próximo o suficiente para olhar por cima do copo. Prímula observou, com curiosidade crescente, enquanto ele franzia o nariz, cheirando a água antes de bebê-la. Ofendida, ela aprumou os ombros em uma postura defensiva, mas antes que tivesse tempo de dizer alguma coisa ele tirou o copo de suas mãos bruscamente, entornando-o de uma só vez e bebendo em goles desesperados.
Somente após o terceiro copo, ele falou pela primeira vez, uma voz suave apesar da rouquidão, surpreendentemente agradável aos ouvidos. Ele era jovem por debaixo de toda aquela sujeira, Prímula se deu conta de repente.
— Você estava caído lá fora. Não sei do que é que estava fugindo, mas o trouxe para dentro. — Ela disse, gesticulando de leve com a cabeça para indicar a cabana. — Meu nome é Prímula.
— Obrigado. Eu não queria assustar você.
Ela corou, sentindo-se subitamente tola por haver gritado. Demonstrar medo diante de um estranho não era a coisa mais prudente para uma mulher sozinha fazer. Vivia com seu pai na pequena cabana, mas ele passava a maior parte do tempo fora, pois era um caixeiro viajante. Suas irmãs mais velhas haviam se casado e partido dali, anos atrás, deixando para ela a responsabilidade de cuidar de seu pai durante a velhice. Sua mãe morrera ao dar ao luz.