Lei Da Liberdade

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Abro os olhos. Meu olhar se prende ao teto cinza acima de mim. Fecho os olhos e sinto o peso do mundo sobre mim, o peso de tudo que me ele me faz passar todos os dias. Porém, não posso me dar ao luxo de continuar deitado, eu não tenho esta escolha. Ergo-me do sofá tendo em mente que minha realidade não permite que eu reclame demais, que perca tempo.

Andando sobre o cimento frio, vou até o banheiro da casa. Chegando, me deparo com meu reflexo no espelho quebrado que há pendurado na parede de tijolos. Percebo que meu rosto ainda não melhorou depois do que aconteceu ontem, noto que ele está até pior. Só espero, de verdade, que o mesmo não volte a acontecer hoje, apesar de saber que isso também faz parte da minha realidade. Então, novamente com esta minha realidade tomando meus pensamentos, saio de frente do espelho, afinal não há nada que eu possa fazer diferente de aceitar que esta é a minha vida e mudá-la é algo impossível.

Arrumo-me em pouco tempo. Como o pouco da comida que eu e meu pai conseguimos e em seguida saio de casa, trancado a porta velha de madeira, sabendo que ela poderá ser quebrada de novo pela a lei.

Andando no beco mal iluminado e estreito em que fica minha casa, noto que há um frio tomando o ar nesta manhã. Diversas pessoas estão me acompanhando, cada uma aos poucos saindo de suas casas e descendo junto comigo os becos e escadas, passando por baixo de enorme emaranhado de fios, ao lado de pilhas de lixo e até mesmo de um canal improvisado de esgoto. Quando finalmente chegamos no portão de entrada da favela, vejo que apesar de eu ter saído cedo, a fila de revista feita pela a lei está consideravelmente grande.

Tomara que não me atrase.

Parado, esperando o andamento da fila, dirijo meu olhar para minhas costas, mais precisamente para a favela. Vejo sua inclinação e sua desorganização urbana, no entanto, que ao meu ver isso traz uma certa beleza. Suas cores vibrantes e misturadas, mesmo nesta manhã fria, trazem um ar de felicidade, de alegria, de vivacidade. Continuo analisando o todo e vejo o enorme muro construído pela lei que cerca a favela nas quatro pontas. Noto também as torres de segurança, quatro no total como foi dito no início do programa "lei da liberdade".

— Eu sou inocente! — escuto gritarem no início da fila, que não está longe. Forço meu olhar para ver melhor o que está acontecendo e percebo um homem no chão, sendo chutado por dois caras da lei.

Não entendo ao certo o motivo deles estarem fazendo isso, a razão pelo qual o homem é culpado. Mas, assim como todos, permaneço calado. A consequência da liberdade é essa.

Engulo em seco.

Demora poucos minutos até chegar minha vez de ser revistado. Depois de eu entregar minha mochila aos caras da lei, ergo as mãos para o ar e deixo que eles me revistem. Lembro-me que a primeira vez que isso aconteceu, quando fiz 8 anos, sentia-me mal, nervoso e até mesmo violado, mas hoje percebo que tal ação é necessária para a manter a liberdade.

Quando sou liberado, vou à estação de trem que existe em frente ao muro leste que cerca a favela. Como de costume ela está lotada e no momento que o trem chega quase não possui espaço para todos nós que precisamos entrar. Mesmo em pé, consigo ficar em um lugar consideravelmente bom, isso pois possuo a vista da janela. Com o trem já em movimento, vejo os enormes prédios da cidade, da verdadeira cidade. Vejo as pessoas andando livremente com os seus veículos, usando seus aparelhos eletrônicos nas calçadas bem-feitas e cuidadas, sem ter nem ao menos um emaranhado de fios passando por cima de suas cabeças. Noto também algumas outras favelas muradas pela lei. Tanto o primeiro lugar, quanto segundo eu ainda não visitei.

Decido parar de ver o que se passa fora do trem e dirijo meu olhar para a TV que há pendurada na parede. Nela está passando uma publicidade da lei a respeito do programa "lei da liberdade". Ela diz que programa hoje completa 11 anos desde o seu início. Eu era bem pequeno, bem mais novo, mas lembro-me bem que onde eu morava era um caos. Na verdade, a cidade inteira por conta das favelas estava um caos. Ocorriam tiroteios todos os dias. Pessoas eram roubadas, eram... eram mortas.

Engulo em seco.

Minha mãe morreu em um desses tiroteios. Então, a violência na cidade continuou crescendo a cada dia, quase se transformando em um espaço de guerra. E vendo esta situação, a população do nosso estado elegeu um governador que prometia acabar com essa onda de violência com seu programa: lei da liberdade. Claro, muitos não queriam ele por seus ideais anticonstitucionais, mas seu partido ganhou força não só aqui, mas no país inteiro, chegando até o cargo do poder executivo e transformando nossa constituição, tirando os nossos direi...

O que eu estou falando?! A situação hoje está melhor, estamos seguros, ninguém morre injustamente. Hoje, o país é cercado por um muro, os estados são divididos por um muro e mesmo acontece com as favelas, tudo pela liberdade.

Fecho os olhos, sentindo algo diferente dentro de mim. Talvez seja mágoa. Talvez seja ódio, mas não importa! Esta é lei e não existe algo que possa ser feito para mudar a realidade. Não existe. Ou existe...? Será que esta realidade é realmente a melhor? Viro meu olhar para o rosto de cada pessoa que está nesse vagão. Todos são moradores de favela assim como eu. Percebo seus semblantes tão... angustiados, fechados, como se quisessem dizer algo, mostrar algo.

Fecho os olhos e a minha realidade volta a tomar meus pensamentos. A revista, a desigualdade presente nesta cidade, a opressão, o medo... Isto não é liberdade! Ela foi tirada de mim, de todos de meu país há muito tempo. Nós só nos esquecemos dela, esquecemos o que é viver em uma... em uma democracia. Se nós realmente tivéssemos liberdade poderíamos de alguma forma exercer nossa cidadania, poríamos lutar pelos nossos direitos, lutar por direitos que não temos, mas não temos liberdade e poucos sabem o que é ela para lutar por algo, por isso que a realidade de todos é essa.

Respiro fundo.

Eu não posso fazer nada.

Povo do meu país, aqui é Aliança — uma voz vem da televisão. As matérias da lei que normalmente passam não estão aparecendo, em vez disso há uma tela preta. — Se vocês alguma vez questionaram esta realidade do país, chegaram à conclusão que estão vivendo com uma falsa liberdade, saibam que estão corretos e não são os únicos que pensam desta maneira. A aliança lutará a partir de hoje pela verdadeira liberdade de todos, a lei não pode continuar de pé.

A TV volta ao normal e todos do vagão começam a murmurar. Já eu sinto aquele algo estranho que estava aqui dentro ficar maior. Eu não sabia o que era isso até agora, mas neste momento sei que é esperança. Ela está viva, crescendo. Ela me faz ver, me dar forças para saber que a "lei da liberdade" precisa ser revista. Tudo precisa ser revisto. Uma revolução precisa acontecer e ela começará hoje.

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