Dona Marcilena era a beata mais devota, moradora do Centro da cidade. Para dona Marcí mais central do sua localização, só o espaço de Jesus no seu coração e nas suas orações. Era conhecida de todos nos bairros ao redor do Centro de Manaus. A beata, assim com A maiúsculo.
A dona Marcí tinha uma filha, que ao contrário do filho de Maria, era tão puta quanto o diabo gosta. Madrinha de bateria. Naínha se torcia interia, quase sambava, quando ouvia falar em igreja, tinha horror daquele lugar. Gostava mesmo era de uma roda de samba e mais precisamente, do centro dela. Isso tinha em comum com a mãe. O centro.
O maior desejo de Dona Marcilena era ver Naínha, a filha do capeta, saída de suas entranhas, devota. Todos os dias a beata reclamava que se a menina continuasse assim, o próprio demônio, em pessoa, viria buscá-la quando chegasse a sua hora. E orava todos os dias pela alma da menina. No dia em que soube que a filha ganhara o concurso pra ser a rainha de bateria da maior Escola de Samba de Manaus, desgostou-se de vez. Enlouqueceu em Cristo. Esperou, pela primeira vez, na sala de casa a outra chegar com seu passo leve. E quando Naínha chegou, viu que a mãe tinha chamado um padre e toda sorte de gente religiosa pra tentar tirar o capeta do corpo da menina.
A cunhatã ria daquela loucura fazendo Dona Marcí correr a casa inteira pra tentar pegar a Naínha pelo braço e levar pra igreja. A menina, ligeira como só ela, sumia, escapava das mãos da mãe tão rápido quanto o diabo fugiria da cruz. Era talento nato.
Mas o curioso nisso tudo era que Dona Marcí sempre quando amanhecia esquecia quase tudo que vivia no dia anterior. O esquecimento é bênção e às vezes maldição. A beata só não se esquecia de ir à igreja todas as manhãs e entre Ave Marias e Pai Nossos enlouquecia a cabeça do padre.
Naínha tinha a segurança daquele esquecimento para viver e achava muitas vezes que isso era bênção do divino, então vivia suas noites de samba em samba rebolando as ancas avantajadas pela cidade. Fazia questão de sumir de manhã e voltar só à noite quando a outra já estava agarrada com a estátua de Nossa Senhora dormindo profundamente. Sim, dona Marcí dormia agarrada na santinha.
E viviam assim, tal Jesus e Satanás.
As conversas do povo se exaltavam na ideia da beatitude ter dado origem aquele pecado e na forma como elas existiam. De dia dominava pela casa os princípios de dona Marcí e a noite, mormaço e suores se entrelaçavam nos movimentos do corpo da Naínha. A casa nunca se confundia. Dizia a vizinhança que ali se misturava santidade e perdição, Deus e o Capeta. Marcilena e Naínha. A dicotomia inicial. Onde explodiu o Centro do mundo.
Naínha achava que Dona Marcí havia esquecido o concurso para rainha da escola de samba e foi levando a vida assim, fazendo à sonsa, dissimulava a história como uma bela trapaceira. Mas a beata disso não esquecera, pra lembrar as satanisses do mal fruto de seu ventre tinha uma memória e tanto, além disso, anotava em um caderninho um a um, pecado por pecado. Se Deus se esquecesse de cobrar a menina depois, Dona Marcilena passaria a ficha todinha e a diaba ia pra cruz.
Foram levando a vida assim, fingindo-se uma para a outra. E Dona Marcí armava, tinha fixa a ideia de que não morreria carregando a culpa daquele diabo e dizia para a estátua de Jesus na sala — É ela, Deus, não eu. — Se precisasse ela mesma tirava o cão do couro da menina.
Fevereiro. Carnaval. A festa se preparava.
O mundo da Naínha chegava ao seu ápice, era o seu momento de mostrar pra cidade interia que as ancas da menina tinham puxado o balanço do rio e a sua aparência faceira iria levar qualquer caboclo que ousasse se aproximar para bem fundo no rio Negro. Se preparava para a avenida, Naínha nesse momento era o centro de tudo, quase esquecera que tinha mãe, quase não lembrava mais que era Dona Marcí.
Mas...
A beata bem lembrava que a Naínha carregaria o fogo da perdição no meio da avenida quando passasse exibindo sua glória, em sua cabeça o pecado estava pra tomar toda a cidade e era ela, a serva de Deus mais fiel, que iria acabar com aquela promiscuidade. O sentimento de glória começava a tomar seu corpo, a felicidade se exibia em seus olhos.
O momento. Escutava-se a festa, as arquibancadas do Sambódromo estavam lotadas, tudo para ver Naínha se exibindo na avenida e a menina entrou, Marcí estava na espreita esperando o momento de aparecer, era recebida com louvor pelo povo e o enredo lhe caia bem, cumpriam ali os seus destinos na terra, e desfilava a rainha. A glória se exibia no olhar de ambas. Passava a escola de samba pelo centro do lugar e elas se regozijavam, tão plenas que pareciam ter sido compostas por um Deus e nessa hora Naínha viu, Marcí lhe esperava lá. A avenida não era mais só sua. Tinha uma outra, a religiosa.
A multidão gritava em glória, mas a menina já não era mais a mesma, estava pálida, assustada até. O grito de Marcí se destacou em meio ao povo e todo mundo parou para olhar, assustados observavam a mulher, pega no ato. Desequilibrada. Enquanto Marcilena gritava, a multidão via Naínha gritar.
A mulher se engalfinhava, se batia, lutava com algo que ninguém entendia, gritava para o demônio sair do corpo. Corpo de Naínha. Corpo de Marcí. E o Sambódromo inteiro assistia. Os religiosos que estavam no lugar e a comissão da escola de samba correram na direção dela tentando lhe segurar enquanto ela se arranhava inteira e gritava histericamente, ao mesmo tempo em que profetizava e se benzia tentava continuar a festa, tentava ser rainha. Cobria seu corpo. Se despia. Enlouquecia.
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Encontro das Águas ( Livro de Contos)
Proză scurtăNessa livro de contos veremos histórias com uma peculiaridade local. Os movimentos aqui seguem o curso dos rios Negro e Solimões. Irão do balanço do barco ao mormaço cimentado da cidade grande.