2. Lagartas no chão empoeirado

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Não acreditei de primeira, afinal quais são as chances de no nosso primeiro dia já acharmos o esconderijo?  Eu não disse nada, acho que não precisei porque Ricardo estava ainda respirando forte e me olhava, não como se fosse me bater nem nada, mas como se perguntasse "o que foi agora?" e eu respondi com o olhar "nada não, vamos indo".

- Cara, é muita sorte, cê tem certeza que tá vazia? - Cássio perguntou.

-Tenho sim, parece até meio abandonada, não tem móveis, não tem pessoas. É bem útil no momento e não precisamos permanecer nela, vamos procurar outro lugar depois. - Ricardo falou pegando a mochila de Tatiana e colocou no ombro direito já que carregava a sua no esquerdo. Ele era bem forte pra sua fisionomia, quero dizer, o cara tinha feito vôlei até o sexto semestre da faculdade e havia começado desde a quarta série do fundamental. A pouca luz que tinha conseguia se fazer refletir no cabelo castanho escuro dele, aposto que no meu também já que lembramos muito mais o nosso pai do que a nossa mãe.

- Não vejo a hora de descansar de uma vez. Por quanto tempo nós caminhamos? - Tati perguntou se arrastando em direção a casa.

-Nem queira saber. - Disse Adriano.

Nós entramos na casa e pelo cheiro pude perceber que ela estava abandonada mesmo. Não era ruim, mas tinha aquele cheiro de poeira. O chão estava bastante sujo, tinha uma pia, algumas coisas cobertas por lençóis, tinha muitas janelas - praticamente uma em cada cômodo, mas elas estavam fechadas - havia teias de aranha, e algumas lâmpadas que não funcionavam. Precisava ser limpa, mas eu não estava muito a fim de me preocupar com isso, estava exausta, então tudo o que fiz foi jogar minha mochila no chão fazendo uma nuvenzinha de poeira levantar.

- Posso colocar meu saco de dormir aqui? - Tati perguntou apontando pra um lugar no chão que ficava perto da janela. Eu concordei com a cabeça e ela posicionou o saco de dormir, depois abriu a janela que não estava trancada como pensamos e sim encostada.

Eu coloquei meu saco de dormir nos pés do de Cássio e em poucos minutos de arrumação estávamos todos confortáveis no nosso esconderijo. Estávamos no que parecia ser a sala. Com a janela aberta o cheiro da casa encontrou uma válvula de escape e o ar ficou melhor de respirar. Fiquei em silêncio olhando pras estrelas que se multiplicaram no céu conforme a noite crescia. Estava em paz, mas acho que o cansaço contribuiu muito pra isso, quando dei por mim, estava sonhando.

O carro sacudia por causa das pedras do chão de terra. No começo, estávamos animados, ouvindo "Novos Baianos" e comemorando nossa primeira viagem depois da conclusão do curso. Cara,  a sensação de liberdade nos preencheu de tal modo que eu podia sentir meu coração pulando dentro de mim sem nem sequer colocar a mão no peito. Tinha acabado. Quatro anos de muito perrengue. Só que nossa comemoração não durou tanto quanto eu imaginava.

- Por que você tem que ser tão idiota? - Adriano gritou se dirigindo a Cássio que estava no banco do passageiro.

- Cara, não deu tudo certo? Por que que você ainda tá reclamando?  - Cássio gritou em resposta irritado, mas não tanto quanto Adriano.

Eu não entendi a discussão depois disso e nem tive tempo, pois Ricardo mandou os dois calarem a boca. Só lembro que teve uma hora... Que ninguém mais se entendia, ninguém mesmo, até Tatiana que é a pessoa mais de boa que eu conheço não parava de gritar com meu irmão por ele sempre querer mandar nas pessoas e tentar se responsabilizar pelo grupo quando ninguém ali precisava de um líder. Eu acho que também não estava bem, meu estômago estava agitado, meu coração não batia tão rápido quanto antes e eu estava com sede, minha garganta estava muito seca. As vozes estavam muito baixas, mas as feições eram de raiva e deboche. 

-Gente... Cala a boca. Mas que merda... - Eu tentei falar, mas não sei se fui ouvida, só sei que tudo ficou escuro.

-Drica?! - Um deles disse, mas não reconheci de primeira quem. - Meu, olha que cês fizeram com a menina? - A pessoa me deu água e eu fui voltando a enxergar e ouvir normalmente. Quem falava era a Tati. 

- Hum? - Eu respondi - Hum. 

- Cê ta melhor? - Ela perguntou.

- Acho que sim, deve ter sido minha pressão só. - Disse me sentando direito no banco do carro - Já acabaram com a gritaria?

- Já sim - Ela olhou reprovando eles - Esses caras me tiram do sério certas horas.

-Sabe, essa viagem tá uma merda. Tô começando a ficar entediado. - Disse Cássio.

- Que que cê quer que eu faça, hein? - Adriano disse.

- Ô, cara, não começa de novo não. - Cássio falou apoiando a cabeça na mão direita. -Sabe que acho?

-Quê? - Eu perguntei. - O que cê vai fazer? - Perguntei enquanto ele discava três números.

- Quê que cê ta fazendo? - Ricardo perguntou tentando ver o que Cássio discava enquanto também tentava dirigir e não fazer merda.

- Alô? Oi, meu nome é Cássio e eu queria confessar um crime.

-Bom dia, gente. - Tatiana disse se espreguiçando.  Sua camisa de flanela xadrez azul estava bem amassada, assim como o cabelo platinado. O moletom estava embolado porque ela tinha usado ele como travesseiro. Além disso também percebi que estávamos parecendo um bando de lagartas estiradas no chão empoeirado por causa de nossas sleeping bags. Fiquei um tanto decepcionada, achei que o sonho não era mais do que aquilo, a verdade é que aquele sonho era uma memória. Uma memória quase tão idiota quanto o fato de estarmos fugindo porque confessamos um crime que não cometemos. Confessamos um crime que não fizemos porque estávamos entediados e dispersos. Era muito cedo pra reviver a sensação do dia anterior, então eu mais uma vez abstrai. Não costumo ser tão quieta muito menos calma, mas acho que aquela situação era chocante demais pra me fazer falar. Considerei estar em algum tipo de estado pós traumático ou talvez eu estivesse com muita raiva, mas ela estava contida em alguma gaveta dentro de mim, esperando alguma coisa abri-la novamente.

Olhei ao redor e vi Adriano bocejando e abrindo os olhos devagar pra proteger do sol que inundava a sala de luz. Sua sobrancelha grossa e preta desenhava uma expressão bem preguiçosa no seu rosto branco e amassado pelas dobras de um travesseiro improvisado (uma camiseta). "Acima de minha cabeça", Cássio dormia tão enrolado que parecia menor do que eu. Na cabeça dele a bandana que Tati usava estava enrolada pra proteger os olhos do sol e com isso garantir  mais alguns minutos de sono. 

- Bom dia. - Ricardo puxou de leve a ponta do meu cabelo pra demonstrar que falava comigo. - Tá tudo bem aí?

- Tá sim. - Eu sorri pra ele. - Bom dia pra você também.

Olhando pra fora o dia estava bem bonito e o mundo parecia quieto e calmo. Me levantei espreguiçando, me virei pra Ricardo e disse:

- Vou dar uma volta.



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⏰ Last updated: Jul 20, 2017 ⏰

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