ATO II

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Três dias e três noites sem sono. Essa foi a punição de Antonieta, que vagava pela casa bebendo todas as garrafas disponíveis nos armários. O corpo de seu filho começara a emitir um cheiro ácido pelo ar, o pequeno cadáver já inchado pelos líquidos fisiológicos. A mulher, obtusa, estava absorta nas palavras da Dama de Vermelho, que aparecia toda vez que começava a cochilar, o que lhe despertava de imediato. Por mais que rezasse, a visão não ia embora. Nem iria.

Ela lavava as panelas do último jantar, ouvindo as notícias recentes da rádio FM. Seu rosto inchado acompanhava profundas olheiras de insônia. Havia três dias que não tomava banho, sentia o cheiro de urina em suas vestes e o restante de fezes em sua calcinha. Quase não havia vida. Lágrimas se tornaram escassas após ter sonhos sem efetivamente dormir após aqueles dias com o cadáver de seu filho.

Ela conseguia pensar em tudo isso que estou contando, mas seu distúrbio já era forte o suficiente para que se mantivesse conformada.

Quanto mais esfregava, mais mordia os lábios. Palavras reverberavam em sua cabeça: "Sacrifique uma criança da mesma idade e ofereça-a em meu nome. Eu sou a Dama de Vermelho". Suas unhas raspavam a crosta de sujeira sobre a panela.

Ela suava, pensando na possibilidade. Será que daria certo? "Quem é essa velha para me pedir isso?", pensou.

Ao olhar o reflexo da panela ariada, não viu a si mesma, mas a imagem da mulher segurando seu filho nos braços, ambos com as respectivas faces borradas. Antonieta recuou bruscamente e subiu as escadas, indo diretamente na direção do telefone, onde discou um conjunto de oito números.

— Alô? Alô, Carlos? 

— Fala, Dona. O que tá rolando? 

— Preciso da sua ajuda, por favor. 

— Vai rolar grana? 

— Sim, vai. Tudo o que você precisar. 

— Então diga. 

— Preciso que arrume uma criança de dois anos e traga para mim amanhã. 

— Isso não é problema, parça. Quero vinte mil, fechado? 

— Fechado. Você sabe onde entregar. Tenho que desligar.

Um dia de ansiedade se passou. 

Antonieta acordou com o tilintar incômodo da campainha da porta, sendo apertada incessantemente até que ela descesse e atendesse o visitante. Nas mãos, um homem alto e branco, de rosto quadrado, segurava uma trouxa em seus braços. Seus olhos estavam estalados, procurando pessoas ao redor assim que Antonieta o abordou.

— Me entregue o garoto. 

— Toma aí, toma aí. Cadê meu dinheiro?

Antonieta se virou e retirou, de detrás da porta, uma maleta.

— Até outra hora. — disse ela, entregando-lhe o dinheiro e fechando a porta imediatamente.

A dona correu para o quarto com a trouxa em seus braços e a abriu. Assim que viu, ali estava um garoto branco, dormindo, apesar de ter sido sufocado. A mulher, prontamente, fechou as janelas de seu quarto, colocando o garoto ao lado do cadáver de Rodrigo, que agora se encontrava esverdeado em tons claros e escuros. 

Ela respirou e segurou a cabeça, pensando no que faria. Ali estava a chance para que tivesse seu filho de volta. Não havia mais retorno de seu pecado.

Chorando, retirou uma faca de sua gaveta e testou no ar os movimentos que faria para assassinar o bebê. O coração palpitava com mais força do que nunca.

Ela se aproximou e sentiu uma brisa fria passar por sua nuca. No canto do quarto, uma sombra bruxuleante a observava. A mulher então se apossou da criança em seus braços e disse em voz baixa:

— Apareça, Dama de Vermelho, e receba esta criança em seu nome.

De súbito, a coisa surgiu às suas costas, respirando em seu pescoço.

Alguns objetos tremeram nos móveis antes de caírem no chão. Seu altar, remontado, desfez-se quando a vela branca se encheu de chamas e estourou. Antonieta ergueu a faca, pensou na imagem de seu filho brincando com seu pai no jardim da casa e sorriu, descendo a faca para atingir o da criança, mas seu próprio pescoço.

O menino em seus braços chorou ao sentir o sangue quente em seu corpo. A mulher só teve tempo para deixa-lo ao lado de Rodrigo e, enquanto se afogava em seu próprio sangue, virou-se para a sombra: ao rosto sem vida e cadavérico de quem outrora fora uma humana.

O espírito perguntou:

"Por que fez isso?"

— Sursum corda... Sursum corda... — Antonieta tentava dizer.

A sombra tomou a imagem de uma idosa, que a segurou pelo pescoço com as duas mãos.

"O que você está dizendo?", o espírito perguntou.

Não houve resposta, embora uma voz descompassada dissesse baixinho:

— Sursum corda... Sursum corda...

A Dama olhou seus pés. O espírito do pequeno Rodrigo segurava seus calcanhares, queimando-os com a luz de sua pureza.

Do outro lado, a alma de Antonieta a segurava pela batata da perna.

"Por que estão fazendo isso?"

O espírito de Robson então se materializou e puxou o pescoço da Dama, passando pelo corpo de sua falecida esposa, que morrera de olhos abertos.

— Sursum corda... Sursum corda...

"O que é isso? De onde conhecem essa palavra?"

A família, reunida, puxou-lhe para baixo, levando-a para o fundo. À medida que afundavam, o fantasma de Antonieta dizia:

— Eu sabia que você desejava o meu e o mal de minha família. Por isso te trouxe aqui, apesar do meu pecado. Sursum corda representa meu coração elevado. Eu não preciso viver e te deixar vagando por aqui. Jesus disse que levaria os demônios consigo. Por isso, eu te levarei também.

O corpo de Antonieta caiu no chão. O bebê roubado continuou chorando. 

Abaixo da casa, os espíritos da família se uniram, abraçando o espírito da Dama de Vermelho, embora do lado de fora, outras cem mulheres igualmente vestidas os observassem, segurando bebês desprovidos de face em seus braços, que choraram em uníssono ao verem uma de suas mães ser levada para o Umbral. 

Sursum Corda: A Lenda da Dama de VermelhoOnde histórias criam vida. Descubra agora