Perspectiva

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Um mago e uma fotógrafa, desconhecidos, se encaravam em frente a um vidro espelhado na beira de uma calçada

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Um mago e uma fotógrafa, desconhecidos, se encaravam em frente a um vidro espelhado na beira de uma calçada. A rua era um palco só deles, vazia e silenciosa. Talvez pelo conforto que encontrava na figura que erguia a máquina fotográfica, ou talvez pela necessidade de se abrir com alguém, ele iniciou:


— Eu gosto de espelhos porque eles refletem quem realmente somos interiormente. Bom, você precisa de uma ajudinha para poder visualizar por completo o que ele realmente quer lhe mostrar.


O jovem moreno tocou o espelho com a ponta dos dedos. Magia corria pelo sangue dele, que estava sendo concentrava naquela extremidade para criar uma simplória ilusão. O vidro passara a mostrar um redemoinho de negritude na altura do coração de Alukard.


— Talvez essa escuridão seja o que eu sou por dentro. Tire suas próprias conclusões. — Ele pausou o que dizia por um instante. 


A fotógrafa permaneceu em silêncio, deixando que ele falasse o que tivesse para dizer. Alma percebeu que a mente dele era cheia, talvez mórbida, mas não menos interessante. Reconhecera-o como o rapaz que encontrara no hotel outro dia, e imaginou que por isso ele se sentira à vontade para aquela conversa inusitada.


— Talvez a escuridão seja o que você ache ou até mesmo queira ser por dentro. O espelho é neutro, mas vemos o que queremos, assim como temos opiniões sobre nós mesmos de maneira pessoal. A distorção está nos seus próprios olhos, e por mais claro que esteja o meio — apontou para o espelho já alterado magicamente — a mudança tem que vir de dentro. 


Ele não se deixou apegar àquilo, e desviou o assunto para algo que tinha acabado de notar.


— Não entendo a necessidade de registrar tudo com fotos. — Atordoou-se.  — Pensando bem...


Um sorriso tristonho se formou nos lábios de Alukard. Fotografar a agonia das pessoas de repente tornou-se uma ideia interessante para ele.    


Alma baixou a câmera pra melhor se dirigir ao rapaz.


— As memórias se fragmentam e até mesmo se modificam com o tempo, mas a fotografia é eterna. — Exibiu-lhe um sorriso orgulhoso. — O que pensa? — Perguntou ao passo que ele não concluíra o que dizia.


— É bem mais complexo do que você fala. A escuridão é o que sou, não é o que quero ser ou o que eu acho ser... ela sou eu e eu sou ela. Sabe, com o passar do tempo nossa alma vai se preenchendo de coisas boas ou ruins, a minha se preencheu apenas de coisas ruins, coisas violentas, coisas assustadoras e que ninguém nunca pagaria para ver tão de perto. Minha alma é negra e ela consome as almas a sua volta, minha presença é perturbadora e minha alma mais ainda. Ela é inquieta, indecisa, vive em caos, mas não busca redenção porque sabe que não existe. Somos apenas ratos em um labirinto e precisamos encontrar prazer nesse lugar.


Olhou de lado para ela.


— Eu gostaria de fotografar momentos marcantes da minha vida. Faço coisas pela ciência. Dissecação de animais, gosto de saber até quanto o corpo de um ser aguenta... gosto de saber os limites, é prazeroso pra mim.


"A necessidade de achar prazer que só a dor alheia lhe proporciona." Aquilo ecoou novamente na mente de Alukard.


Alma escutou atentamente enquanto o mago expressava o que acreditava ser o conceito de si. Era inegável a necessidade de Alma de levar felicidade aos corações mais retraídos; via em Alukard um possível projeto. Era pra isso que ela existia. Como Vênus, não poderia fazer muito, mas sob a face de Alma conseguia infiltrar-se na sociedade moderna e extrair até os mais obscuros dos seres. Alukard não estava perdido, era apenas um espírito atraído pela negritude da existência, pois pelo que aparentava, era tudo o que conhecia.


— Então permita-me conhecer o que de pior tem a me oferecer.


Poderia explorar a vastidão mágica de seu charme, mas não o fez. Utilizou-se apenas de um magnetismo natural e o fitou com um olhar desafiador.


Mas Alukard virou o rosto, com o semblante descrente. Realmente, ele não confiava em nenhuma palavra proferida por ela. "Qual era o problema das pessoas daquela cidade?", se perguntava. "Quando se encontra um homem, de aparência insana, olhos confusos, face cansada, com os pelos arrepiados em sinal de excitação — mesmo que por causa de uma maldita maldição — a reação de pessoas com sanidade seria correr e chamar a polícia, mas... sanidade, era algo que não existia ali.", ele continuava a divagar.


— Você é louca? Nunca ouviu ninguém dizer que quem acompanha o insano é mais insano ainda? 


Virou-se, apontando para a têmpora e forçando os dedos, como se estes fossem penetrar o crânio. 


— Eu não preciso de nada seu, não preciso da sua empatia, das suas desculpas, e muito menos da sua simpatia. Não quero ajuda, você não entende? Eu preciso desenhar? Não se conserta o que já nasce com defeito, mas você parece não entender isso, porque você é perfeita e aposto que sempre teve uma vida boa. 


Deu um chute forte, fazendo o espelho se estilhaçar e assim poder pegar um pedaço de vidro que caiu. 


— SOMOS SÓ VOCÊ E EU AGORA! E EU NÃO QUERO A PORRA DA SUA AJUDA.


Piedade. Era isso que se passava pela mente de Alma. Um rapaz tão jovem mas já tão perseguido pela miséria da boa emoção. Diante daquela explosão, se manteve impassiva, esperando que terminasse tudo o que tinha que ser dito. A própria Guerra não lhe assustara, não seria um semideus machucado pela vida que o faria. 


— Você não me conhece, meu caro. Talvez eu seja louca, talvez não. Talvez minha vida seja perfeita, talvez seja pior do que a sua. Não me conhece, e por isso não pode ter certeza de que não precisa de mim. 


Alma era ao mesmo tempo cativante e envolvente, possuidora de um magnetismo que o impedia de interromper tão belo discurso, ou de até mesmo atacá-la em um momento de fúria. Sem receio, aproximou a destra do punho de Alukard que erguia o estilhaço de espelho. 


— Somos só eu e você agora, e você não sabe o que diz.


Disse com firmeza o  suficiente para convencê-lo daquilo. O olhar de Alma o levava num transe. Nada mágico, era apenas da natureza dela prender a atenção de quem quer que a ouvisse. E então algo aconteceu. Ele baixou a guarda vagarosamente, e com ela, as lágrimas vieram.

O que vemos no espelho?Where stories live. Discover now