I. Sttierla

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Nova Moscou, fevereiro de 2189

    Tudo era estranho.
    Os olhos de Sttierla abriram-se, o que por si já era algo extraordinário e assustador. Era sua primeira percepção de luz, de visão, de mundo, de tudo ao mesmo ao tempo acontecendo rápido demais. Suas íris azuis e claríssimas esquadrinhavam todo o cômodo, coletando os primeiros dados e informações de sua "vida".
Sttierla sentia algo parecido com o que chamavam de vida, como uma lembrança aproximadíssima de algo que já sentira antes, mas de alguma maneira incompleta; falha.
    Seus sensores de reconhecimento estavam ativados pela primeira vez, captando informações que chegavam ao seu subconsciente acusando o frio no ambiente, a presença de outras máquinas e pessoas.
    Falha.
    Pessoas eram estranhas. Sttierla podia analisar, esmiuçar, decifrar e identificar quaisquer que fossem os aparelhos presentes num raio de vários metros, mas sua visão não se estendia às pessoas; mais pareciam barreiras de dado nenhum, agregados de algum material morto para ela, mas vivo, emanando calor constante mas sem apresentar fontes geradoras aparentes. Sttierla tinha medo disso, é sempre tivera. Medo do ilegível, do imprevisível, e do que justamente remexia em seu corpo incessantemente por dias incontáveis.
    Falha.
    Inclusive, três pessoas de roupas brancas a encaravam naquele instante. Estavam longe demais para tocá-la, mas próximos demais para oferecer algum risco. Próximos o bastante para sofrer.
    Sttierla, ou mais necessariamente seu braço — ela não tinha certeza de qual dos dois tivera vontade própria —, avançou contra a garganta de uma das pessoas como uma naja arisca. Um segundo e os dedos sintéticos fecharam-se, a traqueia explodiu e algum líquido vermelho respingou para todos os lados assim como resquícios e pedaços de algo mole.
    Sttierla sentiu calor vindo daquele líquido, semi-viscoso e rubro. A cabeça pendeu e despencou para o chão, as demais pessoas gritaram palavras desesperadas e ríspidas, enquanto um som alarmante começou a tocar estridente e pausadamente. Sttierla então se viu livre, embora ainda não soubesse muito bem o que aquilo significava; nunca entenderia de fato.
    As juntas virgens de seus membros reclamaram discretamente, sendo movimentadas pela primeira vez.
    Percebera que estava inclinada numa espécie de esteira, então primeiramente sentou-se para levantar. De pé, analisou melhor o espaço onde estava atrás de uma saída.
    Era uma sala circular de paredes metálicas e bem iluminada, repleta de maquinários e computadores complexos ao redor da esteira inclinada, apontando para ela, assim como compartimentos com ferramentas, peças eletrônicas e membros robóticos. As duas pessoas socavam o parecia ser uma porta biométrica, gritando por socorro.
    Andar ainda era uma ordem confusa para o cérebro artificial, tanto que as pernas moveram-se trôpegas e com velocidade exagerada rumo às duas pessoas. Sttierla agarrou-se a uma antes que caísse, derrubando-a e já caçando seu rosto com os dedos em riste. Agarrou-lhe a cabeça e apertou-a até estourar, escutando o berro de horror e dor. A pessoa restante tentou acessar o sistema da porta uma última vez, desesperada, tentando ativar qualquer modo de identificação, fosse facial ou biométrica.
    Sttierla tentou se levantar outra vez. Mais do líquido vermelho impregnava sua mão, seu corpo, o chão e até seu rosto. Antes que sua visão, confusa com tantos dados sendo processados ao mesmo tempo, se estabilizasse novamente, um impacto atingiu seu rosto, jogando-a ao chão.
    — Afaste-se! — Gritou a última pessoa, agitando um dos pés, acabando por acertar a face de quem a apavorava.
    Não conseguiu dizer mais nada em seguida. Seu tornozelo foi agarrado e retorcido quase ao contrário, e ela caiu gritando. Sttierla escalou seu corpo e socou sua cabeça até não sobrar nenhuma estrutura óssea inteira.
    A porta se abriu no segundo seguinte à sua esquerda. Revelou um corredor estreito e branco, circular como um túnel e iluminado por linhas de luz. Praticamente, um pelotão de fuzilamento aguardava na outra extremidade, distante cerca de cinquenta metros. Vinte homens de preto, trajando espécies de armaduras foscas, claramente antibalísticas. Um capacete unido ao traje escondia os rostos. Nas mãos, espécies de fuzis pretos já fazendo mira.
    Sttierla os encarou e ergueu-se.
    Correu.
    O desajeito nas pernas passara rapidamente, foram ganhando velocidade sem receio algum, e contra ela começaram a vir os projéteis, ao som do estampido ensurdecedor das armas. Sttierla sentia os impactos no corpo, incontáveis e mornos, mas, além disso, nenhum outro efeito. Alguns segundos e se jogou contra os primeiros homens. Seus braços se agitavam, os punhos cerrados esmagavam tudo com uma força mecânica extraordinária e destruidora. Ao encontrar as linhas de soldados, os tiros cessaram e eles ficaram praticamente indefesos. Os mais atrás foram os primeiros a darem meia volta e correrem para o cômodo anterior. Sttierla sentiu uma segunda porta abrir e não perdeu tempo. Atravessou todos esmigalhando o que fosse preciso, desde ossos à armaduras de kevlar hiper-resistentes.
    Logo ganhou a passagem, surgindo num corredor suspenso que seguia pelas paredes octogonais de um espaço enormes, de teto alto e abobadado. Vidraças nas paredes exibiam o céu claro e sem nuvens um andar abaixo. No solo, um misto de mobílias para descanso como sofá, divãs, poltronas e mesas de formatos diversos, e máquinas de monitoramento como telas e computadores.
    Mais soldados vinham de entradas laterais, ao passo que algumas pessoas de jaleco branco fugiam por meio delas.
    Sttierla mirou nas janelas, mas, antes de correr cômodo adentro, apanhou um fuzil das mãos de um soldado morto. Acelerou na direção das escadas que levavam ao nível inferior, para as vidraças. Mais tiros acertaram seu corpo e as paredes ao seu lado, inúteis. Logo desceu os degraus. Ao deixar o último, girou nos próprios calcanhares, deu mais alguns passos, saltou contra a lamina de vidro e atirou nela antes de terminar de parti-lo em milhares de pedaços com o próprio corpo.
    O tempo desacelerou por um instante.
     Sttierla olhou para baixo e o mundo se expandiu infinitamente em um milésimo de segundo. Um agregado de milhares de arranha-céus altíssimos e iluminados, de estruturas infinitamente variadas, alguns interligados por passarelas suspensas vítreas ou não, despontavam do chão. Entre os espaços estreitos dos emaranhados organizados de monólitos, incontáveis veículos voadores cortavam o ar transitando em ruas invisíveis, formando fileiras ininterruptas, buzinando e zunindo no caos estressante das vias de transporte.
    Sobre tudo isso, Sttierla despencava. Tanta informação ao mesmo instante bugava seu cérebro positrônico recém-iniciado, e sua visão voltava a ficar prejudicada e confusa: Sttierla estava dando boot. Seu sistema tentava forçar um reinício, para tentar assimilar a quantidade de dados.
    E mesmo que ela não quisesse, apagaria enquanto despencava de setecentos metros de altura.

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⏰ Última atualização: Aug 11, 2017 ⏰

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