'Só mais duas horas pra eu decidir', parando agora para observar essa frase, me faz pensar se tudo valeu a pena. Mesmo eu tendo ainda somente 10 anos, busquei sempre viver cada segundo como se fosse o último, mas mesmo assim ainda não consigo saber se valeu a pena cada um deles. Talvez a nossa última hora seja essa, ou nosso último minuto, ninguém sabe. Talvez o que você disse ou fez àquela pessoa que ama, seja a última coisa ou a última palavra. Um 'eu te amo' ou 'não me ligue nunca mais' pode ecoar na mente dessa pessoa pelo resto de sua vida. Se me perguntassem o que eu queria fazer nesse tempo final, eu acho que responderia que gostaria de sentar na minha cama e conversar com o Davi sobre o dia, isso sempre me relaxa, iria me fazer ver que nesse dia, eu fiz alguma coisa que valesse a pena, mesmo não sabendo quais, mas bastaria me lembrar dos detalhes e o momento poderia parar por ali mesmo, congelar o tempo e sentir que tudo seria somente meu. Eu veria o sorriso da minha mãe e o seu abraço, tudo em câmera lenta, e um prazer inigualável iria exalar de meu pequeno corpo até eu chorar.
Olhando para o Davi nesse exato momento, consigo me lembrar da primeira vez em que o vi, das palavras que ouvi e até mesmo da hora que era. Ainda não entendo como tantos detalhes ficam na minha mente. Se eu olhar para um pássaro, me permito lembrar de tantas coisas, que acho que se falar com alguém acabarão me achando louco e me internando em algum hospício. Talvez eu seja louco, mas eu gosto, me dá um pequeno embrulho no estômago, talvez uma sensação de nostalgia e novamente tudo se torna somente meu. Olhar dentro desses olhos castanhos poderia me fazer chorar agora, mas não consigo, quero apenas sorrir. Talvez possa ser um tchau ou um adeus, não sei, o medo do agora, desse exato agora não me deixa pensar direito. Davi é o meu melhor amigo, não faz nem um ano que o conheço, mas o tempo até agora, foi espetacular. Sem a ajuda dele, eu não poderia beijar a menina que eu mais gosto, e muito menos teria me divertido escalando. Eu teria sido somente um garoto esperando o final chegar, com minha mente tentando não pensar em nada para não chorar, enquanto o final não chega.
Exatamente no dia 1 de novembro de 1973 completava três meses de excesso da minha vida. Eu gostava de pensar que eu era algum tipo de morto vivo, igual aos que eu via escondido de minha mãe na tv. Os médicos tinham me dado até o dia primeiro de agosto. Só Deus sabe o quanto eu, minha mãe e Marina choramos no meu quarto nesse dia. Mas os dias foram passando, as semanas e meses também. Os médicos não estavam entendo o motivo de eu ainda estar vivo. Faziam exames e mais exames e nada acontecia, não piorava e nem melhorava. Bom, pelo menos meu cabelo está grande de novo após três meses.
Novembro de 1973
Nesse dia de novembro eu acordei feliz, mas mal sabia que não duraria por muito tempo. Não tirei o pijama como de costume, desci as escadas contando pela milésima vez quantos degraus tinham, eram 14. Adorava esse pijama que a minha tia Marina me deu no ano passado. Ele é totalmente verde, e na blusa tem uma boca e uns olhos de sapos, no short tem algumas bolinhas verde escuro. Sempre quando o uso minha mãe me chama de 'Meu sapinho sorridente', sempre gostei disso, na verdade gosto também quando ela e a tia Marina me chamam de 'Pequeno Príncipe'. No fundo do baú que fica ao lado da minha cama eu tenho uma carta do meu pai, e no final ele também me chama assim, de 'Pequeno Príncipe'. Já se faz pouco mais de quatro anos que meu pai morreu. Por eu ter passado tão pouco tempo com ele, pouco me lembro. Se fechar os olhos, consigo visualizá-lo com poucos detalhes. O que mais me lembro dele é que sou tão branco como ele, e minha mãe sempre me faz lembrar dos meus olhos verdes iguais aos dele.
Quando desci até a cozinha, vi minha mãe mexendo no fogão. Andei até a geladeira e ela só me percebeu por causa do barulho da porta abrindo. Não me lembro a hora, mas era bem cedo da manhã. Eu queria pensar que ela vivia no mundo da lua por causa de seus momentos inértes e distantes, mas sabia que isso era por causa de mim. Desejei sentir a minha dor sozinho, mas não conseguia por serem tantas e fortes demais.
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Pequeno Arthur
RomanceUm somente queria viver e o outro apenas morrer. Talvez existam coisas maiores entre preto e branco, luz e trevas, 8 ou 80 e Arthur e Davi tentam descobrir isso, descobrir o valor da vida e da morte. À beira da morte, Arthur busca entender sobre ela...