Capitão, sei que sua gente não é de se prestar às nossas dificuldades, mas insisto: o que estou prestes a lhe dizer interessa a todos os que habitam estas terras. Eu imploro que te atente às minhas palavras!
Pouco após o nascimento do sol esta manhã, fui à praia de encontro a Andirá. Nós já nos encontrávamos dessa forma por dias e... eu pensei que seria eterno. Eu amava aquele homem!
A cena era lamentável. O sol acabara de escapar de sua prisão nebulosa pós-tempestade, e a felicidade que deveria irradiar com seu fulgor apenas servia para tornar mais visível a lamentação da índia que soluçava.
Desta vez, eu fui até o rochedo onde costumávamos passar tempo juntos e... Andirá estava lá, mas não piscava! Eu fui até ele, chacoalhei o corpo e dei alguns tapas no rosto, gritei que acordasse, mas ele não respondia. Então eu o virei de costas e encontrei... Agh! Me desculpe. Eu encontrei uma abertura sangrenta nas costas dele, como se algo o tivesse mordido... mas era melhor que houvesse terminado assim.
Ela gemeu coisas como "ipupiara" e "tupã nos castigou" entre os gemidos desconsolados que pingavam dela junto das lágrimas que varriam a poeira do chão.
Andirá se levantou, mas não era o meu Andirá! Aquela criatura cambaleava e grunhia, tinha olhos furiosos e estava vindo até mim, tentou me morder! Eu não sabia o que fazer, não queria ficar com a mesma ferida, então eu fugi. Eu sou uma covarde.
Foi então, enquanto eu corria daquilo que meu Andirá se tornara, que eu o vi: era um monstro podre, de cabelos caídos e com várias feridas no corpo. Ele caminhava para fora da água com algas agarradas nas feridas e parecia me querer também. Enquanto tudo isso acontecia, uma tempestade furiosa agitava os céus acima! Há de ser um aviso: algo deve ter deixado Tupã furioso para ele lançar uma maldição tão terrível sobre nós.
A sua gente se mostrou sábia conquistadora dos mares, com os monstros de madeira e tecido em que vieram, além de expertos entre os guerreiros. Eu não significo muito para povo algum, mas peço aos de além-mar que considerem esta ameaça, ou o mundo pode acabar para todos nós.
De acordo com meu fiel intérprete Bartolomeu do Pontal, foi este exatamente o chamado de ajuda desesperado que, naquele ano de 1564, mudou a Vila de São Vicente para sempre.
A índia viera correndo pelas tábuas do porto, gritando para os céus e para as árvores coisas que meus ouvidos europeus não conseguiam distinguir. Eu repousava tão tranquilo na cabine do capitão, entre os tinteiros e astrolábios que me trazem tanto conforto, que o chamado da mulher foi, de tudo, alarmante ― não só para mim, ao meu ver, pois quando abri a porta para o exterior, me deparei com meia dúzia de marinheiros de pé, com olhos esbugalhados que seriam cômicos em qualquer outra situação. Aquela índia ajoelhada, porém, caindo aos prantos e murmurando palavras depreciativas em sua língua nativa estava muito distante dos meus conceitos de cômico.
No entanto, ela dera seu recado e eu, como não estava de tudo ocupado — apenas tinha de assinar alguns papéis sobre a extração de pau-brasil, que o Eduardo Almeida da feitoria me entregara no dia anterior — e me sentia até um pouco solidário naquela tarde, decidi investigar a história que ao meu ver, francamente, era incabível e fantasiosa, fruto das mentes supersticiosas daquele pobre povo retrógrado. O que quer que houvesse acontecido, porém, acreditei que teria de fato encerrado a vida do pobre Andirá, e eu não iria tolerar assassinos ou feras selvagens espreitando nestas matas — não deixaria que esta vila sucumbisse agora que os espanhóis já houveram sido expulsos!
Pedi a Bartolomeu que me trouxesse o arcabuz e que se armasse ele próprio, e que buscasse-me também os cantis e suprimentos. Quando ele voltou, me envolvi com a cinta da arma e a empunhei com determinação. Ordenei aos marujos que tratassem bem a índia e atendessem às suas necessidades ― fazendo questão de enfatizar que me referia a necessidades básicas humanas, para que as maçãs podres não cometessem erros esdrúxulos de interpretação ― e pus-me a caminhar a estrada de areia com meu companheiro de navegações.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Ira de Tupã
Fantasía"Os caraíbas vêm em tempos impropícios, Tupã está furioso e lançou uma maldição sobre estas terras" No ano de 1564, a vila de São Vicente parece, aos olhos portugueses, um empreendimento lucrativo nas colônias brasileiras. Até que, um dia, um perigo...