O touro Agostinho

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Ela já contava com o atraso. Esperava sentada na fonte da praça do Giraldo, abraçando os joelhos junto ao peito e segurando os livros entre o abraço. Um calor difícil de sustentar debaixo de sombra, insuportável a descoberto. Mas era urgente retocar o bronze. Vestia tshit branca enfiada nas calças de cintura subida e tamancos pretos. Salto não muito alto.

O opel corsa aproximou-se, arrastando a marcha e Simão arremessou o braço para fora da janela, muito concentrado sem mesmo retirar os olhos da estrada. Dora observou-o por breves segundos; postura rígida, pescoço reto. E como era de se esperar, depois de alguns soluços, o corsa acabou mesmo por ir abaixo.

"É seguro?", achincalhou ela da fonte.

Ele não ouviu. Ficou a controlar do retrovisor se algum carro se aproximava.

"Simão, acorda e ajuda-me a pôr a mala atrás", pediu ela carregando a mala com as duas mãos na frente.

"Espera aí, acho que vem uma carrinha."

"Ela que espere. Faz-te cavalheiro e ajuda-me a carregar o raio da mala."

Simão abriu a porta, ainda de olho na carrinha que entretanto parara ao fundo. A camisa xadrez a pender-lhe em torno da cintura. Carregou a mala sem fitar Dora, desajeitado e tropeçando nas próprias atitudes nervosas.

"Entra rápido que a carrinha vem aí", avisou.

Dora ficou parada do lado de fora a encará-lo antes de entrar.

"Simão", começou ela. "Relaxa, estás uma pilha de nervos."

"É que vem lá a carrinha e depois começa a apitar."

Ela entrou de braços cruzados, para vincar o desconforto com a atitude do outro, que fez o carro engasgar-se para arrancar.

Da praça do Giraldo até à saída de Évora foram cerca de dez minutos. Dez minutos de janelas escancaradas e o rádio a berrar qualquer música de Nirvana que ele também cantarolava e batucava com os dedos no volante. Depois exibiu o fio ao pescoço com o nome da banda, vangloriando-se por já ter comprado os bilhetes para o concerto.

"Vou estar cara a cara com ele" gritou enfiando uma palmada na perna de Dora. "Kurt Cobain, o deus do grunge."

Simão estava numa euforia excessiva. No fundo, Dora quase o invejava por não poder viajar sozinha também até Lisboa. Não pela música, mas pelo passeio.Ela fez questão de lhe dizer que não o achava preparado para viajar sozinho até Lisboa sem alguém experiente do lado, mas ele nem ouviu, ou fingiu que não escutou. Enfim, haja dinheiro, pensou ela. O carro era novo e o entusiasmo incontrolável.

Simão continuou a divagar qualquer coisa acerca de Kurt Cobain. O cabelo estava quase como o do ídolo, mas ligeiramente mais ortodoxo, estilo cortina separado no centro para cada lado. No entanto, para Dora, a música resumia-se a berros de jovens mal resolvidos com a sociedade. E insistia no mesmo argumento.

"Uma heresia", dizia Simão já enfadado. Mesmo assim não conseguiu impedi-la de quase arrancar a k7 do rádio. Ela não ia de maneira nenhuma até Beja debaixo daquela guerra de guitarras e gritos. As notícias da tarde eram mais interessantes para acompanhar o descampado de início de Verão que já se tingia de amarelos, salpicado de sobreiros descamisados. 

Informação de última hora, mais um agricultor desaparecido. Dora quase arrancou o volume para aumentar.

"Shhh!", fez apontando o ouvido.

"O que foi?"

"Espera, deixa ouvir."

Falava-se do desaparecimento de um agricultor, na sequência da morte de outro coitado. Um total de três homens desaparecidos e um morto. Conflitos motivados por desacordos acerca de herdades e terrenos. Aparentemente existia um terreno problemático na junção de outros quatro, cujo os limites se interceptavam. Alguma coisa aquela propriedade tinha, que fomentava a discórdia. Ainda que o sujeito encontrado morto tivesse sido abalroado por uma manada de touros bravos. Não era certo de que se tratavam de assuntos relacionados, mas aconteciam na mesma área; bem ali onde Dora e Simão deslizavam a caminho de Beja.

Mistérios no AlentejoWhere stories live. Discover now