Os holandeses

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O marido despediu-se com um beijo seco e rotineiro. Não ía demorar, prometeu. Apenas deixaria os convidados no aeroporto sem esperar pela hora de embarque.

Ela acenou para o monovolume uma última vez antes de voltar par dentro e começar a retocar a sala. Disfarçou a bagunçada acomodando almofadas nos sofás, encheu a bandeja com copos de caipirinha e vinho, espalhados pela sala e equilibrou-os até à cozinha. Havia sido noite de festa. Um casal de amigos próximos, também holandeses, que estava de passagem de férias pelas planícies alentejanas e outra amiga íntima de Anelise. Noite de excessos e risos descontrolados. Ninguém acreditaria que se tratavam de homens e mulheres de meia idade. Ricos; milionários, excêntricos e dispostos a aproveitar os restantes anos de vida como nunca o haviam feito durante a juventude. Juventude gozada entre livros, cursos, negócios em busca das melhores oportunidades de assegurar um futuro risonho. Que se tornava agora em presente palpável. Às vezes inimaginável.

No terraço para a piscina deambulava um odor forte de vinho e bebidas espirituosas. A desarrumação ainda mais agreste. De mãos apoiadas no quadril, Anelise respirava fundo analisando o cenário. Esperaria pela senhora da limpeza, decidiu. Ao menos a sala já não parecia tão caótica. Afinal de contas nada se faria na piscina durante aquele dia.

Soou a campainha. Mais cedo do que esperava. Não a campainha da entrada principal; a dos portões para a mansão. Na imagem da câmara exterior, a mulher estava de olhos no chão, esperando resposta do intercomunicador. Anelise apertou para abrir os portões que se arrastaram em sons metálicos. Já contava com a senhora da limpeza para dar um destino à desorganização que se tornara incontrolável.

A senhora voltou a tocar, agora na campainha principal.

"Pode entrar", disse Anelise.

"Bom dia", desejou a jovem. 

Mais nova do que Anelise pensara. Lenço branco de flores castanhas no cimo da cabeça, segurando longos cabelos ondulados e muito escuros. Não era o tipo de mulher que Anelise quisesse próximo do marido. Além do mais, apresentava-se de maquilhagem retocada e brincos chamativos.

"Quer que limpe aqui fora primeiro?", perguntou a jovem prontificando-se para o fazer.

"Fique à vontade"

"Tem uma casa linda", elogiou a jovem e Anelise anuiu.

A frente da casa era adornada de jardins divididos pelo carreirinho que subia dos portões até à porta principal. A fachada envidraçada dava para a sala de um lado e para a cozinha do outro lado do carreirinho. Uma vista ampla e panorâmica para quem estivesse em qualquer uma das divisões. A piscina ficava do lado de trás. Um oásis que contrastava com o cenário seco de oliveiras e vinhas a perder de vista, para lá dos limites da mansão.

Anelise serviu uma taça de vinho na cozinha e arrastou os chinelos até ao quarto que ficava por cima da sala. Também ele de frente envidraçada. Era possível contemplar as vinhas todas entrançadas a acompanhar a ondulação dos montes. O céu muito azul navegado por nuvens pacíficas de quase meio dia.

Fechou as cortinas e esboçou um sorriso envergonhado, relembrando as loucuras da noite passada em que agiam como adolescentes, empurrando-se para a piscina, música alta, muita bebida. Momentos em que tudo se tornava permitido. Horas separadas de leis morais, éticas e religiosas. O marido gritava como um louco. O típico adulto incorrigível, homem de boa constituição física, cabelo e barba grisalha. Sempre predisposto para celebrar. Dançava desengonçado como se nunca o tivesse feito na vida, agitando as ancas, de pernas abertas e garrafa de vinho na mão.Naturalmente que o Alentejo, na sua passividade, alimenta o estado de espírito festivo que se agravou com a noite quente. Apenas observados pelo céu atafulhado de estrelas. E a herdade era grande. Sem vizinhos para se queixar da música alta, ou dos gritos arremessados para a piscina.

Mistérios no AlentejoWhere stories live. Discover now