Capítulo 2

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I

- Quer dizer... acho que morri.

O gato desce do parapeito com um salto, espreguiça-se e deita no piso, de frente para mim. Desaba o corpo preguiçoso, balança o rabo lentamente, batendo-o no chão. Começa a lamber o corpo.

Levanto, dou atenção ao bosque, à leste.

Escuro.

- Há coisas que se escondem no escuro, Gato. Durante muito tempo achei que fosse bobagem de criança. Mas o "bicho-papão" existe mesmo. - Breve pausa. - É verdade que os gatos veem coisas que os olhos humanos não enxergam?

- Humano vidro gato vê muito. Humano vidro, humano não vê.

Humano vidro? Reflito sobre o que Gato quer dizer com isso. Passeio a visão até ter a atenção capturada por uma lixeira que fica por trás do bar; há algumas garrafas de vidro lá. Humanos vidros?

Ah! É claro! Vidro geralmente é transparente. Gato deve ter associado a translucidez dos espíritos com a dos vidros. Bichinho esperto.

Não deixo de sentir um calafrio com o mencionado. Não sabia que os espíritos realmente vagavam. Contudo, depois do que passei, isso não me surpreende tanto.

- Espíritos, Gato? Você os vê? - sento-me de novo, cruzo as pernas, curioso.

- Espíritos humanos vidro?

- Sim. Espíritos são como chamamos os humanos de vidro.

- Espíritos gato vê.

Fico fascinado com tudo isso. Estou a bastante tempo conversando com um gato (o que já é fantástico) e descubro que sua inteligência, apesar de limitada com palavras, é perfeitamente capaz de fazer associações para interpretar o mundo e criar uma conexão linguística. Seriam os outros bichos assim também?

- História fim?

Retorno das conjecturas.

- Ah não, Gato. Não mesmo!

Mergulho nos olhos do animal. Continuo ironicamente, na mesma linguagem dele, com voz arranhada e dramática.

- História apenas começo!

II

Despertei.

Ainda no fundo da lagoa imunda.

A primeira imagem que vi foi a de Trapaceiro ao meu lado. A pele se colava aos ossos do rosto, exibindo cada protuberância do crânio. Um tiro havia deixado um buraco no meio da testa, o maxilar foi destroçado do lado esquerdo por outro disparo. O resto do corpo era uma verdadeira peneira. Peixes mordiscavam pedaços de carne dilacerada ainda presas a ele.
O mais esquisito era que parecesse um cadáver de vários dias, se havia morrido há pouco!

Minha boca se escancarou em um grito mudo; bolhas subiram à superfície da água. Com o susto, movimentei braços e pernas tentando recuar, percebi que não estava mais amarrado. Meus algozes deviam ter me soltado. Trapaceiro ainda estava preso.

Após gritar submerso, quis puxar oxigênio. Emergir se tornou uma necessidade.

Uma braçada, duas e...

...não precisava de pressa, pois não sentia falta de ar! Era como se pudesse ficar ali brincando de prender o fôlego, mas sabia que os pulmões estavam vazios.

Cheguei à superfície, sem puxar o ar dos desesperados e nadei até a margem. Saí na área do bosque, em meio à escuridão das árvores. Como poderia estar vivo?

Royal Flush (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora