Ela descansou os pés no painel e estourou a bola de chiclete com um estampido ensurdecedor, preenchendo o carro com o cheiro enjoativo de tutti-frutti sintético. Ele contraiu a mandíbula diante daquele pop irritante, apertando o volante até os nós dos dedos ficarem brancos.
Emílio sempre ouviu dizer que um bom viajante não possuía planos fixos nem o intento bobo de chegar; tudo isso, de certa forma, arrancava o espírito de aventura da viagem. Enfiar a mala no carro, seguir sem rumo e parar para admirar a vista e os encantos da beira da estrada eram as regras primordiais de toda boa viagem.
Mas aquela, infelizmente, não era nem seria uma boa viagem. Num resumo certeiro e doloroso da crueldade do destino, aquela seria a pior viagem da vida de Emílio Andolini. E o motivo estava sentado no banco do carona, com as pernas pálidas jogadas sobre o painel, os olhos castanhos fixos na tela do celular e a boca rosada mascando aquele maldito chiclete apesar dos inúmeros pedidos de Emílio para que ela não o fizesse.
Pietra Salles em toda sua glória. Pietra Salles, a mulher mais irritante que Emílio Andolini tivera o desprazer de conhecer – e trabalhar com – havia sólidos quinze anos.
Mas já vamos chegar, pensou Emílio, apesar de o GPS esfregar em sua cara que o otimismo não passava de uma ilusão infantil. Entre eles e Punta del Este se estendiam mais de setecentos quilômetros e oito horas de viagem.
Longos setecentos quilômetros e exaustivas oito horas com Pietra Salles mascando chiclete de tutti-frutti e enfiando os pés, aqueles pés de anã de jardim que desconheciam outro calçado que não fosse sapatilhas e tênis All Star, sobre o painel de seu carro. Emílio sorriu em desespero, a dor de ver aqueles tênis esfarrapados sujando seu precioso painel encerado crescendo a cada segundo que avançavam pela BR-116.
Ele pensava em como pedir um desconto ao Seu Alceu na lavagem do carro — o serviço sairia o olho da cara se a maldita redatora continuasse balançando os pés embarrados sobre o painel — quando Pietra Salles estourou outra bola de chiclete. O cheiro de tutti-frutti fechou a garganta de Emílio.
— Já mandei parar com essa merda, Salles.
Ela virou a cabeça com um olhar entediado, como se ele fosse tão interessante quanto uma porta pintada de branco. A ruiva maldita mascou o chiclete, sorrindo com o canto dos lábios e voltando a atenção para a estrada.
— Parar com o quê, Andolini?
— Não te faz de sonsa. — Ele apertou o volante. — Para com esse chiclete.
— Com o chiclete?
— É. Com a bola de chiclete. Para com essa merda.
— Parar com a merda ou com a bola de chiclete?
Jogos de palavra. Ele respirou fundo, contando até cinco. Aquilo era típico dela.
— Tu entendeu o que eu quis dizer, Salles. Se tu estourar essa bola de chiclete dentro do meu carro mais uma vez, vou te deixar no acostamento e torcer pra que um desses caminhoneiros tarados te carregue pra longe. Não tô com paciência pra lidar contigo hoje.
Ela riu. Pela visão periférica, Emílio vislumbrou a bola de chiclete crescer nos lábios rosados da maldita. Ele apertou o volante.
Quando o pop do chiclete explodiu em seus ouvidos, enchendo o carro com o cheiro enjoativo de corante industrializado, Emílio não teve dúvida do que fazer em seguida. Reduziu a velocidade, parou o carro no acostamento, destravou as portas e disse:
— Desce.
Pietra cruzou os braços, rindo com o canto dos lábios. Com aqueles cabelos ruivos nojentos emoldurando o rosto sardento e com o casaco militar folgado por cima do macacão jeans que deixava suas pernas à mostra – quem diabos usava macacão jeans em pleno século XXI? –, ela era o retrato de tudo o que ele mais abominava.
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457 Milhas | AMOSTRA
Short StoryO maior problema de Emílio Andolini não é a falta de organização ou seu chefe avoado. Não é um problema terem confundido os horários do ônibus que os levariam a uma premiação de publicidade no Uruguai ou ter de dirigir os setecentos quilômetros de...