Pietra prendeu os cabelos ruivos pela milésima vez quando passaram por São Lourenço do Sul. Ela arrumara os cabelos tantas vezes seguidas durante aquela hora silenciosa, prendendo e soltando o coque malfeito com a caneta de tampa mordiscada, que Emílio se sentiu de volta à faculdade.
Quando estudavam juntos, Emílio ocupava um lugar logo atrás de Pietra, que, com aquela mania irritante de prender os cabelos incessantemente, deixava a mesa dele tomada por fios de cabelo ruivo. Ele trocara de lugar ainda na primeira semana de aula e decidira, logo na apresentação dos calouros, que não gostava dela.
Pietra Salles era o verdadeiro arquétipo da estudante de Publicidade: a menina riquinha, mimada e metida a hippie que passava mais tempo no bar da faculdade e nas festinhas do campus do que estudando. Emílio odiava os colegas que agiam daquela maneira, que fumavam baseado atrás de baseado nos gramados, que exibiam as chaves dos carrões e riam como se a universidade fosse uma festa e eles, os donos daquele mundo onde tudo era diversão e vida boa.
Emílio Andolini não tinha nada contra Pietra Salles. No íntimo, a considerava apenas mais uma riquinha vazia e insuportável que se multiplicava pelo campus a cada vestibular.
Mas quando ela o arrancou da posição de melhor aluno sem ao menos se esforçar, Emílio deu início à competição que durava havia quinze anos.
Só para irritá-lo, porque no fundo, bem no fundo, Pietra não era do tipo que se importava com médias e destaques no currículo, ela exibia aos amigos insuportáveis as notas e os estágios que conseguia naquele tom de voz feito para a sala inteira ouvir. Tudo era fácil demais para Pietra Salles, e Emílio a odiava justamente por isso.
Sendo aluno bolsista, ele se desdobrava em mil para estudar e manter o emprego de garçom num restaurante mequetrefe do Centro, limpando mesas o dia inteiro e enfrentando a condução lotada para chegar a tempo da primeira aula. Pietra chegava de bicicleta, sempre atrasada e com um imenso copo de café na mão, exatamente como uma estrela de Hollywood que pisava num set de gravação ansioso por sua aparição.
Emílio a odiava porque ela era a única da sala, a única do curso inteiro, que conseguia batê-lo nos estudos sem tentar. Pietra se sentava de qualquer jeito, gargalhava nos corredores e era incapaz de ser pontual, mas era a única que apresentava um desafio. A única.
Ele queria mostrar a ela que a vida recompensava o esforço, que o trabalho duro e a seriedade eram os únicos caminhos para o sucesso, mas Pietra sempre fazia tudo com aquela eterna atitude risonha e avoada que conquistava todo mundo. Os professores eram doidos por ela, as atendentes do bar riam de suas histórias absurdas e até o pessoal do xerox saía para a balada com ela.
E a média da maldita, mesmo com tudo isso, mesmo com as faltas numerosas e as festinhas, não caía.
O nível da competição chegara a tal patamar que os professores esperavam pelos trabalhos dos dois, pelos argumentos que trariam nos seminários. Discordavam de tudo, e qualquer colocação de um gerava a discordância feroz do outro. Até que veio a formatura e eles nunca mais se viram. Para o Azar – com letra maiúscula – de Emílio, o período de tranquilidade durou apenas três anos.
Ele estava quase acreditando que Pietra havia desistido da Publicidade para vender artesanato no Camboja quando, dois meses após iniciar as atividades como diretor de arte na Gamut, enquanto tomava um cafezinho com Gustavo, Emílio viu cabelos ruivos entrarem em seu campo de visão. "Ah, o Kim tá apresentando a redatora nova pra todo mundo", havia dito seu amigo. "Porra, é a Pietra da facul, cara! Tu te lembra dela, né?"
(É necessário dizer que Emílio se lembrava e que quisera morrer ao entender que Pietra Salles dividiria o mesmo ambiente que o seu outra vez.)
— Falta muito pra gente chegar? — perguntou ela.
Imerso nos próprios pensamentos, Emílio se virou para a redatora. Ela franziu o cenho. Sem graça, ele disse:
— Falta.
— O que foi, Andolini?
— O quê?
— Tu tá esquisito. — Ela apertou os olhos. — Caladão e distante. O que houve que tu não tá reclamando de nada?
— Ser caladão e distante é o meu charme, Salles. Acostume-se. — Emílio sorriu sem vontade, ultrapassando um sedãzinho lotado de crianças. Ela apertou os olhos outra vez. Antes que o silêncio tomasse conta do veículo, Emílio emendou: — Tava só pensando.
— Em quê?
— Na época da faculdade.
Para a surpresa de Emílio, ela não fez nem sequer um comentário engraçadinho. Com o rosto sardento impassível, Pietra observou o display do rádio, que ressoava a música clássica num volume baixo. Daquele jeito avoado, a redatora puxou e soltou o elástico que sempre trazia ao redor do pulso direito – outra mania irritante que Emílio abominava – pelo menos dez vezes antes de dizer:
— Semper memento...
— Oi?
— Semper memento — repetiu ela, encarando-o. Emílio franziu o cenho. — "Sempre se lembre." Esse era o lema inscrito no brasão da universidade.
— Como tu te lembra disso?
— Sempre se lembre, Andolini. — Ela sorriu com o canto dos lábios. — Parece que o aluno de ouro não prestou tanta atenção às aulas quanto imaginávamos...
Ele apertou os olhos. Pietra apoiou a cabeça na mão direita, rindo. De relance, Emílio notou que a pequena tatuagem que ela tinha no pulso, um planeta Saturno feito em tinta preta, com hachuras delicadas no sombreamento, estava vermelha por causa da fricção do elástico de cabelo com a pele pálida.
— Pelo menos eu tinha a decência de ir às aulas. — Ele fechou a cara. — Teve uma semana que tu faltou inteira. Inteira. Todas as aulas, do início ao fim. Como pode isso?
— Como tu te lembra disso?
— Por que eu sempre me lembro. — Emílio sorriu com o canto dos lábios. — Espero que aquela semana tenha sido boa pra ti. Foi pegar uma praia pra fugir das aulas?
— Não fala do que tu não sabe, Andolini.
O tom de voz foi absoluto, cortante como o de uma rainha da Europa Medieval que pedia pela cabeça de um criminoso havia muito procurado. Emílio se virou para Pietra com o cenho franzido. Com o rosto sardento irradiando uma fúria sem precedentes, ela fechou a cara, cruzou os braços e fixou os olhos castanhos na estrada.
Pietra e ele não passavam um dia sem discutir, um par de horas sem trocar provocações. Ela, muito mais debochada do que Emílio, tirava sarro de tudo; dos trabalhos que ele fazia, das manias que ele cultivava desde a faculdade, das camisas que ele usava e até do jeito com o qual ele organizava os ícones dos programas na área de trabalho do computador. Emílio, sendo o tipo de pessoa que perdia a paciência com a facilidade de um estalar de dedos, não deixava nenhuma provocação barata. E quando ficava a um milímetro de socar as paredes e gritar com Pietra, a redatora soprava um beijo debochado em sua direção e sumia pelos corredores da agência, gargalhando como se houvesse presenciado a piada do século.
Tudo era material para Pietra Salles tirar uma com a cara dele, tudo era motivo para provocações e piadinhas. No íntimo, Emílio desconfiava que o passatempo preferido de Pietra era esse: fazê-lo passar raiva.
Mas ela nunca havia falado daquela maneira antes, como se o odiasse. Não de brincadeira, mas de verdade. Como se o detestasse da raiz dos cabelos alaranjados às solas dos pés sardentos com uma força que seria capaz não só de mover montanhas, mas de criá-las, puxá-las do fundo da terra e fazê-las tocar os céus.
E isso o assustou. Aquele tom de voz, o maxilar trincado e a fúria fria não combinavam com o ruivo dos cabelos dela. Era como ver uma brasa recém-saída da fogueira propagar frio, gelo e neve. Não parecia certo.
Emílio abriu a boca para confrontá-la, mas já era tarde. O nome de Kim piscou no painel e um toquezinho polifônico estraçalhou a música clássica ambiente.
Sem olhar para Pietra, ele apertou um botão no volante, atendendo a ligação do chefe.
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457 Milhas | AMOSTRA
Short StoryO maior problema de Emílio Andolini não é a falta de organização ou seu chefe avoado. Não é um problema terem confundido os horários do ônibus que os levariam a uma premiação de publicidade no Uruguai ou ter de dirigir os setecentos quilômetros de...