No cume da montanha

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Costumava ser um bom juiz, um namorado assente, um marido exímio, ainda melhor. Costumava ser um bom homem.

Mas foi rápido. Tão rápido. Demasiado rápido. Foram passos maiores do que as pernas, palavras menores do que o que nos brotava do peito. Amor que ficou por mostrar, flores que ficaram por enfeitar os quatro cantos do mundo. Beijos que sobram, que guardo nos meus lábios secos e ansiosos por rever o sabor do que é ser-se amado. Num dia, emborcava uma dúzia de boas bebidas, fortes, pela goela abaixo, abria os braços e impulsionava-os para o céu, para o infinito, para o limite. Era invencível, jovem, atraente. Era juiz! Oh, Deus! Um juiz, novo, com uma estrada pela frente. Daquelas novas, recém alcatroadas, incólumes. Agora, aqui, o mais que posso fazer é estendê-los e tentar arduamente não tocar o ferro grosso e inquebrável. Costumava usar o meu olhar perfeito e irresistível, vagabundo pela sala apinhada, os meus cílios uniformes ou as minhas cutículas irrepreensíveis. Levava a saliva aos lábios e observava. Era um bom observador. Sabia julgar. Sabia encontrar as palavras certas e ordená-las, colorindo o céu apenas servindo-me delas. Sabia ser um homem, um guerreiro. Justo na vida, justo na morte, dizia. Atribuía o destino que todos escolhiam sem pensar nas consequências, no sofrimento ardente, na fúria sinistra que podia despontar. Nunca tive medo. Nunca receei uma bala, uma arma, ser o alvo. Porque era juiz, e, valha-me Deus, estive acima de tudo e todos. Era mais alto que uma montanha, mais poderoso do que qualquer outro. Era um deus, uma peça vulnerável e terrivelmente essencial, precisa e decisiva. Assustadoramente decisiva.

Nunca me preocupei com o meu próprio destino. Nunca me dignei a olhá-lo nos olhos. Aproveitava a minha vida de licenciado e bem na vida, acabado de executar o meu décimo projeto com uma ordem de execução. Uau! Que adrenalina que me vagueava pelo sangue. Vermelho. Vida. Uma respiração ténue, mas extenuante. Oh, como era boa aquela sensação. O que era mesmo? A ambição. Quão cruel,
mas saborosa. Sentia o poder que nunca soube que tinha nas pontas dos meus dedos, a fluir-me nas veias, a crepitar-me no peito.

— Isto é bom. O poder. — gargalhava, quão ordinário e hipócrita. Sentado nesta cama desdobrável, a realidade não me parece tão colorida assim.

Costumava ser um herói, julgar-me irrepreensível e jamais recusado. Foi por isso que nunca me deixou. A Luise. Com os meus vinte e oito anos e o meu cabelo incrivelmente infestado de gel, para manter uma aparência que agora desejava ter-me fugido, como poderia ter recebido qualquer resposta que não um sim? Impossível. Assemelhava-se a uma piada, até. Eu? Nunca. Jamais um não.

Pois. Também pensei que chegar aqui era impossível.

Conheci-a dois dias antes do primeiro processo. Foi amor ao primeiro olhar, ao primeiro toque, ao primeiro sussurro. Ela respirava vida, jovial e bela. Os seus olhos verdes contrastavam com o negro puro do seu cabelo, ondulado. Era impossível apontar uma falha, uma simples falha. Era perfeita, e o meu desejo de a ter tomou conta de mim.

Descobri o que era a magia, o que significava estar-se completo. Tive o meu momento Eureka e durante tempos só soube sorrir, mesmo em frente aos pobres coitados que tinham pela frente o mesmo destino que eu agora sou obrigado a acarretar.

Convidei-a para sair. Um encontro. Uma semana depois de a ter visto pela primeira vez, segurava-lhe a mão subtilmente e afagava-lhe os dedos esguios, mas perfeitos, quão perfeitos. Olhava-a nos olhos quando a encontrava distraída e sorria, porque podia continuar a fazê-lo pelo resto do meu dia. Os processos estavam longe, distantes, porque tudo o que importava era aquela sensação, aquele amor improvável e aquela paixão súbita. Não conseguia explicar. Era a primeira vez que não conseguia encontrar, por mais que me esforçasse por fazê-lo, palavras à altura. Palavras sinceras, reais e que nos encaixassem como o seu vestido curto. Não foi a última nem a única vez.

No cume da montanhaOnde histórias criam vida. Descubra agora