Minhas filhas -- Já que neste momento nos despimos do governo, não só dos territórios e cuidados do Estado -- ora dizei-me qual de vos mais amor nos tem deveras, porque alargar possamos nossa dádiva onde contende a natureza e o mérito. Fale primeiro Goneril, à nossa filha mais velha.
GONERIL - Senhor, amo-vos mais do que as palavras poderão exprimir, mais ternamente do que a visão, o espaço, a liberdade, muito mais do que tudo que é prezado, raro ou valioso, tanto quanto à vida com saúde, beleza, honras e graça, como jamais amou filha nenhuma ou pai se viu amado; é o amor que torna pobre o alento e o discurso balbuciante. Ama-vos para além de todo extremo.
CORDÉLIA (à parte) --- Cordélia que fará?
Ama e se cala.
LEAR --- Todo este trecho aqui, de uma a outra linha, com suas matas e campinas ricas, com rios caudalosos e seus prados de larga bordadura, te pertencem. De tua prole e de Albânia, como posse perpétua vai ficar. Que diz agora nossa segunda filha, a queridíssima Regane, esposa de Cornualha?!, fala.
REGANE --- De igual metal que minha irmã, sou feita e pelo preço dela me alivio. No imo peito, descubro que ela soube dar expressão ao meu amor sincero. Mas ficou muito aquém, pois inimiga me declaro de quantas alegrias se contenham na mui preciosa esfera dos sentidos tão-só. Achei minha única felicidade na afeição de Vossa mui querida Grandeza.
CORDÉLIA (à parte) ---- Então, coitada de Cordélia! Contudo, nem por isso!. Pois estou certa de que meu afeto é mais rico do que a língua.
LEAR ---- Que para ti e os teus fique de herança permanente este terço avantajado do nosso belo reino, em rendas, graças e extensão não menor em nenhum ponto. Em sorte, coube a Goneril. Nossa alegria, agora, conquanto a última, não a menor, e cujo afeto jovem os vinhedos da França e o branco leite da Burgúndia disputam: que podeis dizer-nos para um terço mais opimo virdes a obter do que os das vossas manas? Falai.
CORDÉLIA --- Meu sonhor, nada.
LEAR --- Nada?
CORDÉLIA --- Nada.
LEAR --- De nada, sairá nada. Novamente dizei alguma coisa!.
CORDÉLIA --- Infeliz de mim, que não consigo trazer meu coração, até minha boca!. Amo Vossa Majestade, como é meu dever, nem mais nem menos.
LEAR --- Vamos, vamos, Cordélia: corrige, um pouco, tua resposta, senão, prejudicais sua herança.
CORDÉLIA --- Meu bom Senhor, tu me geraste, me educaste, amaste. Retribuo cumprindo, o meu dever!, de obedecer-te, honrar-te, e amar-te acima de todas as coisas. Mas para que minhas irmãs, têm os maridos, se afirmam, que amam unicamente a ti?. Creio, que, ao me casar, o homem cuja mão, receber minha honra, deverá levar também, metade do meu amor, dos meus deveres e cuidados. Jamais me casarei, como minhas irmãs, para, continuar à amar, meu pai, unicamente.
LEAR --- Mas teu coração, estás no que dizes?.
CORDÉLIA --- Está, meu bom Senhor.
LEAR --- Tão jovem, e tão dura?!.
CORDÉLIA --- Tão jovem, meu Senhor, e verdadeira.
LEAR --- Pois se assim é, assim seja: tua verdade será então teu dote. Pelo
sagrado resplendor do sol, pelos mistérios de Hécata - Deusa do céu e do inferno - pelo negror da noite, por todos os giros das esferas celestes por cujos eflúvios, passamos a existir ou deixamos de ser, o que somos. Renego aqui todas as minhas obrigações
de pai, parentesco e afinidade de sangue, e, de hoje em diante, e para todo o sempre, te considero estranha a meu coração e a mim mesmo. Ao bárbaro Cita, e ao Canibal que transforma os filhos em alimento para satisfazer o apetite. Darei
em meu peito acolhida, piedade e proteção igual à ti, que não és mais minha filha.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Rei Lear - William Shakespeare
ActionPERSONAGENS TRÁGICOS; LEAR, rei da Bretanha. O rei da França. O duque de Burgúndia. O duque de Cornualha. O duque de Albânia. O conde de Kent. O conde de Gloster. EDGAR, filho de Gloster. EDMUNDO, filho de Gloster. CURAN, um cortesão. ...