Doses de vida

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               É incrível quanto uma xícara de café pode agregar quando acompanhada de um estranho no meio da tarde. O melhor é que a dose de cafeína nem precisa ser das grandes, ouvidos atentos e 20 mls de um expresso já são o suficiente para uma história inteira.

               Sentar-se com tempo em uma cafeteria é muito mais que um prazer a sós se você souber olhar ao redor, afinal, qualquer lugar tem uma história para contar. Em uma tarde dessas, meu pingado trouxe junto a história de uma mulata, veio de longe e mal sabia o que fazia por aqui. Ela quem encheu minha xícara, e junto do recipiente de porcelana, meu coração.

              Aquela pequena mulher de pele morena, muito maior por dentro do que qualquer outra pessoa poderia ser por fora, tornou até meus maiores problemas simples banalidades. Me sinto até mal roubando a história que ela me vendeu junto com o café naquele dia, mas sei que ela só não doa todas aquelas palavras para o mundo porque tem gente que não sabe escutar.

              Ela seria sozinha em casa se não fosse a filha pequena que ainda mal falava, meu café renderia alguns centavos a mais no salário dela e se tudo desse certo, iam sobrar dois ou três assados da cafeteria para a janta no quarto alugado que ela chamava de lar. A parte intrigante é que ela via o melhor em tudo, ah aquele sorriso, os dentes brancos contrastavam de um jeito tão bonito com o tom da pele que ela me parecia a mulata mais linda que já vi.

              A caixinha de gorjetas ainda estava vazia e o mês já tinha começado faziam uns dias, mas ela sabia que ia arrumar dinheiro para a mudança e as passagens de volta para casa. Meu café já havia baixado mais da metade, mas eu bem queria que ela falasse durante a tarde toda, talvez um segundo café com leite ou um expresso me renderiam algo a mais sobre aquela mulher.

              Algumas pessoas entraram, compraram algo com ela e se foram, sem nem pensar em quanto aquele gesto de deixar uns trocados no recipiente de acrílico mudariam os dias da garota. A parte que me desagrada é que o conteúdo da minha xícara terminou e tive que deixar a banqueta para outro cliente, que quem sabe foi apenas tomar um café para perder tempo, ou acompanhar o cigarro, ou até mesmo tentar esquecer a história que tinha para contar. Mas eu quis ficar lá, continuar a ouvir a história da mulata e começar a do próximo cliente, infelizmente, nem sempre é assim que as coisas costumam funcionar quando falamos sobre esses diálogos que envolvem a vida e goles amargos do café quente.

              Depois daquela tarde eu ainda passei por aquele café, mas a pequena mulher não estava mais lá, e eu queria saber da nova história que ela tem para contar, se ela foi para casa, ou trabalhar em um novo lugar, se a garotinha dela já sabe falar sobre todas as coisas, ou quantos salgados sobraram no fim da tarde. Eu nunca mais voltei lá para um café.

              Aquela cafeteria nunca mais foi para mim um bom lugar, não pela história ou pelas próprias bebidas, mas sim pela falta da mulata, de pele quase tão negra quanto os olhos, e de coração quase tão valente quanto a própria alma. Agora eu tomo café em outros lugares e escuto outras histórias, mas essas ficam para outra hora.

Coffe shotsWhere stories live. Discover now