I - A gratidão dum povo

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Em 20 de agosto de 1762, a cidade da Haia, muito cheia de vida, muito branca e garrida, em que todos os dias parecem alegres domingos; a cidade da Haia, com o seu parque muito copado, com as suas grandes árvores tombadas sobre as casas góticas, com os largos espelhos dos seus canais, onde se miram os campanários de cúpulas quase orientais; a cidade da Haia, capital das Sete Províncias Unidas, entumecia todas as suas artérias com um fluxo preto e vermelho de cidadãos apressados, ofegantes, excitados, que corriam com facas nos cintos, espingardas aos ombros ou paus nas mãos, para o Buitenhof, terrível prisão de que ainda atualmente se conservam as janelas de grades, e onde, depois da acusação de tentativa de assassínio feita contra ele pelo cirurgião Tyckelaer, estava encerrado Cornélio de Witt, irmão do ex-grande pensionário(1) da Holanda.

 Se a história deste tempo, e sobretudo a deste ano, no meio do qual começamos a nossa narração, se não achasse intimamente ligada com os dois nomes que acabamos de citar, as linhas explicativas que vamos escrever poderiam parecer fora de propósito; mas desde já prevenimos o leitor, esse amigo velho a quem sempre prometemos algum prazer na primeira página, cumprindo a nossa palavra, bem ou mal, nas páginas seguintes, de que esta explicação é tão indispensável à precisão da nossa narrativa como à inteligência do grande acontecimento político que serve de quadro à presente história. 

Cornélio ou Cornelius de Witt, ruward de Pulten, isto é, inspetor dos diques deste país, ex-burgomestre de Dordrecht, sua cidade natal, e deputado aos Estados da Holanda, tinha quarenta e nove anos, quando o povo holandês, saturado da república, tal como a entendia João de Witt, grande pensionário da Holanda, se sentiu tomado de um amor violento pelo stathouderato(2), que o édito perpétuo imposto por João de Witt às Províncias Unidas abolira para todo sempre na Holanda.

 Como nestas evoluções caprichosas é bastante raro que o espírito público não veja um homem por detrás de um princípio, o povo via, por detrás da república, os dois rostos severos dos irmãos Witt, esses romanos da Holanda, que desdenhavam lisonjear o gosto nacional, e amigos inflexíveis de uma liberdade sem excessos e de uma prosperidade sem supérfluo, do mesmo modo que por detrás do stathouderato via o rosto inclinado, grave e meditador do jovem Guilherme de Orange, a quem os seus contemporâneos batizaram com o nome de Taciturno, que depois passou à posteridade. 

Os dois Witt contemporizavam com Luís XIV, não só por verem que o ascendente moral deste monarca sobre toda a Europa crescia de ponto, como também por terem experimentado o seu ascendente material sobre a Holanda nos sucessos da campanha maravilhosa do Reno, ilustrada por esse herói de romance, chamado conde de Guiche e cantada por Boileau e que, em três meses, acabava de abater o poder das Províncias Unidas.

 Luís XIV era de há muito inimigo dos holandeses, que o insultavam e escarneciam quanto podiam, quase sempre, é preciso dizê-lo, pela boca dos franceses refugiados na Holanda. 

O orgulho nacional fazia dele o Mitrídates da república. 

Existia portanto contra os Witt o duplo ressentimento que resulta da resistência vigorosa seguida por um poder, lutando contra o gosto da nação e da fadiga natural de todos os povos vencidos, quando esperam que outro chefe possa salvá-los da ruína e da vergonha. 

Este outro chefe, prestes a aparecer, prestes a medir-se com Luís XIV, por mais gigante que parecesse dever ser a sua felicidade futura, era Guilherme, príncipe de Orange, filho de Guilherme II e neto, pela parte de Henriqueta Stuart, do rei Carlos I de Inglaterra, o taciturno jovem, cuja sombra, como já afirmámos, se descortinava por detrás do stathouderato.

 Este mancebo contava vinte e dois anos em 1672.

 João de Witt tinha sido o seu precetor, e havia-o educado com o fim de fazer do homem que nascera príncipe um bom cidadão. Levado pelo amor da pátria, que no seu coração suplantara a amizade que naturalmente devia ter ao seu discípulo, tinha-lhe tirado, pelo édito perpétuo, a esperança do stathouderato.

A Tulipa Negra - Alexandre DumasOnde histórias criam vida. Descubra agora