— Vê este quadro, Daniel?
O garoto ao seu lado teve os cabelos eriçados pela fala repentina de Wendy, que permanecera pensativa perante uma das obras mais reconhecidas de seu pintor preferido durante minutos inteiros, apenas apreciando os traços marcantes e a mistura de cores indispensável.
— É carregado de tristeza — sussurrou.
— Wendy, mamãe disse que eu devia te ajudar por enquanto. Não acho que foi uma boa ideia ter vindo para cá e fazer o que faz todos os dias desde que se mudou.
Londres não era mais o lugar preferido da garota no mundo. Dentro de si, as coisas que as pessoas haviam-na dito ainda a perseguiam em pesadelos tão profundos quanto a indisposição persegue eternamente os artistas. Seus olhos de tom celeste percorriam as grandes paredes decoradas por adornos e uma fina camada de poeira histórica. Não mais prestava atenção em seu irmão, que era certo estar ali para saber se tudo estava bem.
E alguma vez chegara a estar?
Daniel se impressionou com a calma da irmã mais velha pela multidão de turistas que enchia o Museu de Orsay em plena sexta-feira de novembro. O frio começara, mas as roupas nada protetoras dela indicavam uma falta total de consciência. Ele devia ter percebido algo errado desde então.
— Estou falando sério, Didi.
— Não me chame assim, Daniel, odeio quando você faz isso.
Eles continuaram caminhando pelos corredores infestados de máquinas programas e se deslocaram pelas salas fartas de flashes contínuos em direção a obras tão populares que Wendy sentiu repulsa. A conversa dos guias em diferentes idiomas a exauria aos poucos e, ao final do percurso, seu irmão percebeu o peso sobre seus ombros.
O quadro de Vincent Van Gogh à frente era o preferido da garota aspirante a artista. A beleza nas curvas de Auto-Retrato causava uma euforia um tanto quanto irracional na jovem de cabelos louros, a qual seu tão tolo acompanhante jamais poderia entender.
— Tenho minhas próprias teorias.
— Essa não é a questão, nossos pais me pediram para vir aqui e ver o que estava acontecendo com você.
Ela sabia que a faculdade os alertara com certa urgência sobre a rotineira vida que seu mundo pessoal estava tomando, mas tudo o que disse foi:
— Ele faz uma perfeita, porém surreal impressão de si mesmo. Vejo o quanto se esforçou para terminá-lo, a majestade envolvida em todo o processo artístico. Sabe o que mais? A textura. Aparentemente era uma vida conturbada, não?
— Não estou entendendo nada — Daniel pegou na mão da irmã. — Temos que voltar para seu apartamento, não pode ficar mais aqui. Por favor.
— Os quadros de Van Gogh são os mais belos que eu já vi. Não só por retratar a beleza da vida e do cotidiano, como levá-la além do imaginário, ao quase fantasioso. Sabia que esse traço é único no mundo?
Os olhos azuis do garoto se dilataram ao olhar pela primeira vez em direção a Gogh, o cara do qual a irmã não parava de falar desde que chegaram ao museu.
— E as outras obras?
— Bobagem! — Afirmou com convicção enquanto voltava a admirar o retrato. — Os museus são feitos àqueles que vivem pela arte e sua história. Assim como a Europa, a maioria da infestação só acontece pelo status e pelo senso comum. Por acaso alguém menciona o Louvre sem Gioconda ou qualquer outro projeto dele? É tudo tão cínico! Mal sabem o prazer de se respirar este ar, sentir esta emoção vibrando pelas paredes, simplesmente surreal!
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A tinta amarela de Van Gogh | COMPLETO
Short StoryParis é a cidade das luzes, mas a vida de Wendy não continha nada além de escuridão. Tentando manter-se lúcida durante a vinda do irmão até sua república, a garota consumida pelas artes de Vincent Van Gogh terá que se decidir entre seguir a poesia d...