02. Uma obra de Wendy

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Poderiam até desconfiar, mas Daniel se lembrava da primeira vez que vira os olhos da irmã. Miúda e pálida, nunca chegou a abrir os olhos durante meses. Porém, quando se deitou ao seu lado no novo berço e a tocou com toda a delicadeza de criança, viu seus olhos azul-celestes e soube que Wendy havia finalmente nascido.

Agora, dezoito anos depois, quando a viu nascer pela segunda vez, a mesma paixão irradiava daquele olhar medroso, indo em sua direção.

— Daniel? O que houve?

— Você morreu e voltou. Não precisa mais saber de nada.

Ela sentiu uma dor intensa logo abaixo do peito, vendo que ali havia muita gaze e litros infinitos de soro injetados em suas veias.

— Não me lembro.

— Parece que a arma que pegou do segurança da universidade falhou de última hora e te atingiu. Me sinto arrasado, sabia?

— Me perdoe, eu não queria de verdade.

— Mas poderia ter morrido, perdeu tanto sangue que até os médicos acharam um milagre ter aguentado.

Wendy olhou para o corredor, onde crianças brincavam descontraídas enquanto uma médica não contava boas notícias aos pais.

— Como me salvaram? Fiquei sabendo que o banco de sangue estava em falta.

— Sabe, sempre digo a você que ser seu gêmeo é uma droga, principalmente por não termos o mesmo tipo sanguíneo. Mas, pelo visto, sua colega de quarto, aquela que foi ameaçada na festa em seu impulso ansioso, também é B+.

A loura não imaginava que Glenda pudesse fazer aquilo. Até arregalou os olhos ao pensar que aquela garota perfeita tinha mesmo salvado sua vida sem ao menos terem trocado cinco frases inteiras durante seus meses juntas na república.

— Me sinto um lixo — falou.

— Não se sinta — ele continuou, chegando ao seu lado e dando-lhe um beijo. — Só quero que você pense no que fez.

— Penso em muitas coisas, mas essa história da faculdade não me convenceu. Mamãe jamais te deixaria resolver um problema desses sozinho. O que realmente veio fazer?

Do bolso do casaco, ele tira uma carta um pouco amassada com um selo bastante reconhecido pela garota dos olhos atentos.

— Isso é do Museu de Artes Metropolitano de Nova York!

— Eles querem suas obras em uma exposição só sua com temas contemporâneos. Eles viram algumas fotos no site da academia e vieram falar comigo, já que não retornava as ligações.

— DANIEL, EU TE AMO!

Seus braços o levam de encontro ao seu corpo debilitado, mas nenhum deles se importa com a quantidade de fios ou o ferimento por pouco incurável. Ela estava tão feliz que seria capaz de correr agora mesmo à América.

Recompondo-se, ela percebeu que o rosto de seu gêmeo voltava a ficar sério.

— Eu sei o quanto você ama arte, mas precisa viver fora daqueles museus e descobrir sua verdadeira arte. Sua quase morte seria uma réplica exata do que Gogh fez, percebe? O reconhecimento pós-morte é o pior dos talentos. Sua vida é feliz, mas você não entende que se afastar das pessoas não é a melhor maneira de se curar, mesmo sem perceber. Sua imaginação fértil a fez apagar as pessoas que a amam de verdade: nossos pais, eu, Glenda, as duas únicas amigas que deixou em Londres e com quem nunca mais conversou depois do último ano. Elas também mandaram uma dúzia de cartas que nunca chegaram a ser abertas.

A tinta amarela de Van Gogh | COMPLETOOnde histórias criam vida. Descubra agora