Capítulo I

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Sentiu o corpo todo formigar. Sua visão ficou embaçada e podia ver apenas feixes de luzes que faziam doer seus olhos. Então, sentiu que estava de cabeça para baixo, flutuando. Momentos depois, estava de costas, em queda livre. Fechou os olhos. Agora sentia a gravidade maltratando seu corpo, como se o chão estivesse por todo lado. Fez força para permanecer parado, mas não sabia se aguentaria por muito tempo, seu corpo estava muito pesado.
Passaram-se apenas alguns segundos, que pareceram intermináveis. Estava coberto de suor quando voltou a sentir o chão embaixo dos pés novamente. Confuso e assustado, abriu os olhos lentamente e não acreditou no que viu. Surgiu uma floresta de árvores gigantescas, maiores do que qualquer uma que já tenha vista na vida, onde antes havia um beco meio escuro e um banco. O cheiro de maresia foi substituído pelo cheiro de terra e mato.
Eu só posso estar sonhando. Com certeza estou sonhando.
Percebeu movimento atrás de uma árvore. Parecia ser uma pessoa, mas não tinha certeza.
Um sonho muito, muito estranho. E vívido, vívido demais. Mas... Não, tem que ser um sonho... Ou estou tendo alucinações. Arfou em zombaria, mas a graça passou em um instante. Meu Deus! Estou mesmo alucinando. Eu nem sabia que tinha essa habilidade, nunca imaginei que fosse capaz de tal coisa... LSD...? Mas quem poderia ter me drogado? É mais fácil eu estar louco. Minha mente, enfim, entrou em colapso. Sou esquizofrênico. Está tudo na minha cabeça, mas como faço para parar?
Enquanto refletia, os seres escondidos atrás das árvores começaram a aparecer, revelando serem vários, em vez de apenas um. Primeiro de um em um, depois mais desinibidos. A curiosidade havia vencido o medo, pelo menos foi o que pensou Fernando, mas aqueles seres não estavam com medo, estavam assustados. Foram surpreendidos com algo que a muito não presenciavam, não o garoto, mas a falha.
Eram vinte ao todo, cercando-o por todos os lados. Usavam vestidos compridos de diversas cores e em tonalidades escuras, meio desbotados e gastos, que cobriam-lhes os pés e arrastavam ao chão. Com mangas tão longas que não deixavam á vista sequer seus dedos. Mantinham os rostos completamente cobertos por capuzes, formando fendas escuras que causava-o certo desconforto.
Embora as roupas que usassem fossem estranhas, Fernando mal prestou atenção nelas. Estava impressionado com a forma daquelas criaturas. Tinham dois metros ou mais de altura e eram tão esguios que suspeitou que nada havia em seus corpos além de ossos. Uma vontade súbita de se afastar e ficar longe do que quer que aquelas coisas fossem invadiu seu ser e o medo secou sua garganta, tirou seu fôlego e o deixou completamente imóvel. Um calafrio percorreu sua espinha.
Não, isso não é alucinação, nem drogas. É real. Mas como...?
Minutos antes estava esperando a Clara e meus amigos, num banquinho perto do Dragão do Mar*.
Como vim parar aqui?
Recordou que viu algo estranho um pouco antes de tudo enlouquecer. Como o ar próximo à parede com grafite de asas tinha tomado uma forma gelatinosa, como se tivesse mudando do estado sólido para algo entre o líquido e o gasoso. Lembrou como ficou curioso quando viu aquilo fluir pelo ar, flutuando.
Foi isso. Isso me trouxe até aqui. Mas onde é aqui?
-Ahn, oi? - Oi? Meu Deus, eu sou patético - Onde estou? O que aconteceu?
-Nós somos os Legendários! Como ousa atrapalhar nosso feitiço? - a voz era um sussurro de vento, tão gélida que o fez estremecer. Ouvida mais com a mente do que com os ouvidos. Parece a voz da morte... Parecia vir do que estava a sua frente, talvez fosse o líder, mas não tinha certeza.
-Des-desculpa, mas eu não fiz nada. Estava esperando minha namorada e no outro instante estava aqui.
-Mentira! - falou o que estava atrás, no mesmo tom cortante.
- O portal foi desfeito. Nossa magia não poderia ser desfeita sem um contrafeitiço poderoso - falou outro.
-És um mago de outro mundo?
-Na-Não. Eu sou estudante.
-Diga-me Mestre Estudante, como fez para bloquear nosso feitiço? - disse o primeiro.
Ótimo! Sou um Mestre, meus professores adorariam essa... Um sorriso toma forma e morre instantaneamente em seus lábios. Como vou fazer eles entenderem?
-Já disse, não fiz nada. Eu... Eu apenas apareci aqui e não sei fazer nenhum feitiço. Deve ter sido outra pessoa. - Deu um sorriso fraco e ergueu os ombros, tentando ser convincente.
-O que acham desse Mestre Estudante? Diz a verdade?
Vozes disseram não, outras sim. Espero que essa votação não seja por unanimidade. Pensa em reforçar o que disse anteriormente, enfatizar sua falta de informação, mas não sabe mais o que dizer. Então permanece calado, esperando pelo veredito.
-Lendário, sejamos prudentes. Mesmo que esteja dizendo a verdade, esse Mestre Estudante - Ótimo, o apelido pegou - é um ser de outro mundo, um mundo do qual não sabemos muita coisa. Quantas oportunidades temos de estudar essas coisas? Pensem. Quanto poderíamos descobrir sobre ele e seu povo? - Nando não estava gostando de como as coisas estavam indo.
-Seriam-nos informações de inestimado valor.
-Sim.
-Talvez até saiba onde está.
Onde está o quê? Eu não sei onde está nada. Será que eles não entendem?
-Levemos o Mestre estudante como cativo.
-Todos de acordo?
-Sim - Foi unânime. Antes que tivesse tempo de protesto, surgiram cordas aos seus pulsos e calcanhares. Olhando melhor, percebeu que não eram cordas de verdade, era uma fumaça enegrecida que mesmo gasosa parecia bastante sólida.
-Por favor, eu disse tudo que sei. Não fui eu. Não fiz nada. Por fa...
Um capuz virou em sua direção e tudo ficou muito quieto, embora estivesse gritando. Então, percebeu que não podia mais falar, o ar passava por sua garganta e saia entre os seus lábios, mas o som estava perdido. Em desespero, começou a se debater, caindo no chão e lutando contra as cordas. Um erro. Elas ficavam mais apertadas a cada movimento que fazia. Até que a dor o fez parar.
Estava desolado. Não conseguia entender como tudo mudou tanto. Esse tipo de coisa não acontece e mesmo assim estou aqui. Não faz sentido. Pelo menos aqui sou um Mestre. A piada não trouxe conforto nenhum.
Reparou em si pela primeira vez. Ficou em choque. Suas roupas, que antes eram uma bermuda branca, sapatênis azul marinho com a sola na cor branca e uma blusa de botão também azul em uma tonalidade mais clara com detalhes de timões em azul muito escuro, mudaram completamente para botas pretas, calças frouxas de linho que deveriam ter sido brancas algum dia, mas que agora tinha uma coloração amarelada, blusa de mangas compridas também branca, embora não tanto amareladas, e uma túnica de couro marrom amarrada com um cinto do mesmo tecido na frente e uns fios transpassados, como cadarços. O relógio que estava usando no punho direito sumiu e no seu lugar apareceu uma pulseira feita de couro e corda, estilo miçanga. Durante todo esse tempo sua mente estava em um turbilhão, mas agora ele não conseguia pensar em nada. Apenas admirava suas roupas.
-Não vejo outra opção que não seja voltarmos para os Templos. Perdemos muita mana e abrir o portal novamente seria impossível.
Mana? Portal? Feitiço? Contrafeitiço? Magos? Mestre? Se fosse para adivinhar, eu diria que estou em um jogo de RPG. O jogo mais realista do mundo.
-Que voltemos.
Os Lendários começaram a sair do círculo e, por um momento, Fernando pensou que o tivessem esquecido. Quando o último a sair estava a cinco metros, seu corpo levantou e ele flutuou sessenta centímetros acima do chão, seguindo-os na retaguarda. Depois de alguns minutos já estava em total agonia com a falta de conforto de sua viagem. Estou flutuando. Flu-tu-an-do. Como pode ser tão desconfortável? Deveria ser como deitar em uma nuvem. Tomara que chegue logo. Onde quer que seja. Não aguento mais.
Além da enormidade das árvores, a floresta escondia mais peculiaridades. Algumas plantas tinham formas estranhas, por exemplo: trepadeiras que cresciam formando correntes e cogumelos gigantes do tamanho de guarda-chuvas; arbustos verdes, que pareciam algodão doce, mexiam levemente para cima e para baixo, como se respirassem; curiosas plantas purpúreas que lembravam pinheiros, mas apenas com trinta centímetros de altura, soltavam um muco vermelho semelhante ao sangue daquela distância. Havia flores em formatos de sinos que ressoavam quando o vento batia em suas pétalas. Outras tinham uma espécie de bico se projetando para fora de si, de onde saía um jato colorido de tempos em tempos, da mesma forma que fazem os perfumes, deixando todo a área ao redor delas com uma névoa arco-íris. Botões de um azul reluzente estavam por toda parte. Folhas caídas das gigantes árvores ocupavam boa parte do chão. Chamavam atenção tanto pelo tamanho como por suas formas. Eram losangos, corações, gotas e também outras que lembravam colmeias cheias de mel.
Por um momento o garoto esqueceu as dores, fascinado. Mas estranhou a total ausência de animais, como se a floresta não estivesse completa. Até os animais não gostam deles...
O solo se tornou mais inclinado e ele percebeu que estavam ao pé de uma montanha. A frente surgiu a entrada de uma caverna, mas não uma caverna comum. Parecia um palácio. A rocha tinha sido esculpida -de forma tão magnífica que ficava difícil desviar os olhos. O portal foi talhado para parecer com enormes portas de castelo abertas e pintado de um dourado tão vivo que parecia feito completamente de ouro. Só pode ser pintado, ninguém usaria tanto ouro na entrada de uma caverna. Pedras do tamanho da palma de uma mão estavam incrustadas por todo lado. Verde esmeralda, azul royal, vermelho cereja e tantas outras cores. Não tinha como saber se eram pintadas ou verdadeiras pedras preciosas. Não dá pra imaginar que essas...essas coisas têm um templo tão lindo assim. Se têm tanta riqueza deveriam comprar roupas novas.
Dentro, a caverna estava muito escura, iluminada apenas por archotes, mas pôde ver que o interior seguia o mesmo padrão esplendoroso da entrada. Ok, eu realmente estou no melhor jogo de RPG do mundo. Só não sei jogar e já virei prisioneiro. Podia ser pior, poderia jogar um feitiço em mim e me transformar em uma lesma.
Seguiram para os fundos, revelando vários túneis. Foram por ali durante alguns minutos no completo silêncio. O piso era irregular, subia, descia e dava curvas. Eles continuaram no mesmo ritmo, pareciam nem notar. Até que apareceu luz do dia vindo de um buraquinho, que foi crescendo a medida que andavam. No fim, era tão grande quanto a entrada. Quando saíram, somente era visível um precipício e as árvores lá embaixo, estavam em uma pequena faixa de rocha entre o abismo à direita e a paredão da montanha à esquerda. Os vestidos obstruíam a visão do que havia à frente, pois estavam todos uns do lado dos outros sem deixarem brecha e muito acima do campo de visão.
O que havia para ver era um portão. Desta vez era verdadeiro e estava fechado. Percebeu uma certa agitação quando os portões se abriram, os magos entravam em duas fileiras. Só agora pôde ver o que estava diante deles.
O átrio onde estava, nada mais era do que um acesso dos túneis a um grande salão, como pôde ver quando chegou sua vez. Ao entrar, reparou nos detalhes, pois poderia haver uma rota de fuga. Embora não achasse muito provável. O salão era oval, vinte tronos de cores diferentes, combinando com aas roupas de cada mago, estavam dispostos em meia lua ao redor de um tablado de um metro e meio. Um livro grosso e muito velho descansava em cima dele, cheio de poeira. Como nada mais estava empoeirado, Fernando achou que fosse uma característica do livro. Bem típico. A iluminação era feita através da distribuição de espelhos nos ângulos certos, refletindo a luz que banhava a parte superior da montanha e entrava por um espaço feito especificamente para esse fim, deixando o ambiente mais iluminado do que a floresta lá fora. No fundo do salão havia dez portas muito simples comparadas a todo o resto, quase passavam despercebidas. Supôs que levavam a mais túneis que passavam pelo coração da montanha.
Os magos sentaram, mas não tinha lugar para Fernando, que continuou seguindo contra sua vontade até o canto da sala. Se viu livre das cordas, que sumiram de rep ente. Não houve tempo algum para pensar em liberdade. Grades da mesma substância fumacenta das cordas surgiram em sua volta e sobre sua cabeça. Não havia porta ou janelinha para passar comida e as barras eram muito próximas. Embora parecessem fumaça, eram impossíveis de serem retiradas, torcidas ou afastadas. Não tinha como fugir.
-Assembleia iniciada! - engoliu em seco. Agora vão decidir o que fazer com o ratinho de laboratório.
-Resolvamos primeiro as questões a serem discutidas.
-Se me permitir...
-Com toda certeza - falaram os outros. Essa formalidade toda está me deixando cansado. Pulem logo para a parte importante. Mesmo com a falta de paciência, Fernando começou a perceber a diferença nas vozes, que antes pareciam todas iguais. Era possível que fossem homens e mulheres, mas não tinha forma de identificar se não pela voz.
-Bloqueio do feitiço transcendental; Registro de mana; Planejamento de abertura de novo portal; e por últimos o que fazer com o Mestre Estudante. Todos de acordo?
-Sim - em unanimidade.
-Sigamos a ordem. Bloqueio do feitiço transcendental.
-O que deu errado?
-Pouca mana?
-Não, estávamos com o máximo de mana possível.
-Contrafeitiço?
-Não há ser em nosso mundo com nível mágico tão alto para tal coisa e aquela criaturinha não parece capaz de fazer qualquer tipo de magia. Tanto é que não conseguiu soltar-se.
Ótimo, agora sou uma criaturinha. Prefiro ser chamado de Mestre. E eu nem sabia que era um teste, se não eu teria tentando me soltar.
-Talvez o mundo dele seja um dos mundos não-mágicos, como nos foi alertado.
-A julgar as suas capacidades, que até então foram nada, acredito que seja possível. - Nada? Definitivamente eu não gosto desses Legendários. Fez cara feia.
-E se o procuramos tem poder de bloquear feitiços? O Oráculo Ancião do Mundo Neutro nos confirmou que as capacidades da coisa seria infinita.
-Como poderíamos solucionar essa questão?
-O Livro.
-O Livro.
-O Livro.
O volume no tablado ficou suspenso no ar, multiplicou-se e parou um na frente de cada mago. Abrindo-se ao mesmo tempo. Folha a folha foram passando para exame dos magos, até que pararam todos na mesma página. Fernando estava no canto esquerdo do salão e podia ver apenas a lateral, sem saber o que estava escrito. Como se sentissem sua curiosidade, talvez realmente soubessem suas intenções, não leram uma palavra.
-Funcionaria?
-Sem dúvida alguma. A mistura dos dois feitiços é compatível e o feitiço de fixação torna mais poderoso o transcendental em cinco vezes. Vejam, está no Livro.
-Isso, está no Livro
-O Livro nunca erra.
-O Livro já errou, a prova disso está nesse assembleia, que deveria pautar o que fazer com nossa nova aquisição e não como abrir o portal novamente.
-Não sabíamos que a Ciência atrapalharia nossa magia. Como poderíamos saber?
Ciência? Eu ouvi bem? A ciência atrapalha a magia deles? Como assim? Sei que não tem magia no meu mundo, pelo menos eu acho que não, mas isso não por causa da ciência. A ciência existe pela falta de magia. Pelo menos eu acho.
-De fato falhamos, não por culpa do Livro.
-Nem nossa.
-Deveríamos termos nos precavido melhor. Havíamos sido avisados. Tolos são os que duvidam das palavras do Oráculo Ancião.
-Tolos? Como ousa nos julgar como tolos? Muitos o fizeram e não estão mais aqui para fazê-lo.
Uma novela mexicana.
-Um Legendário humilhando a si próprio e aos seus irmãos... Como fizeram as antigas classes... - arfou de desprezo.
-Basta irmãos. Caso suas memórias estejam enfraquecidas, a minha continua bastante afiada e irei relembrá-los. Nós mesmos nos humilhamos quando levamos a decadência nossa classe. E fizemos pois passamos a nos julgar conhecedores de toda verdade. Esta falha não é nada além da consequência de supormos isso novamente. Devemos aprender com nossos erros.
-Então, o que faremos?
-Sigamos os feitiços descritos no Livro. O Livro nunca erra.
-Próximo ponto.
-Registro de mana.
-Como estão nossos reservatórios?
-Toda a mana foi consumida para o último feitiço.
-E como estamos de matéria-prima?
-Estamos bem abastecidos de vidro glacial e essência de pleias.
-E lágrimas cristalizadas de dragão...?
-Irmãos, terei que interromper esta discussão de extrema importância. E a isso posso desculpa a vós. Contudo, essas não são questões a serem levantadas diante um mago de outro mundo. Devemos, primeiramente, decidirmos qual será o seu destino. E ao ver, devemos designá-lo ao calabouço até segunda ordem.
-Tens razão irmão.
-Sim, devemos fazer isso prontamente.
-Então está decidido.

*Dragão do Mar é um ponto turístico bem conhecido em Fortaleza-CE, cidade onde boa parte da história acontece.

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⏰ Última atualização: Nov 02, 2021 ⏰

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