O almoço efetuou-se ao meio-dia. Paddy sabia preparar o peixe à moda
das ilhas; envolvia-o de folhas e fazia-o cozer num buraco previamente aberto e
aquecido. Com mais as raízes de taro cozinhadas da mesma forma, e cocos
frescos, fizeram um excelente almoço, após o qual Mestre Button encheu uma
grande concha de rum e acendeu o seu cachimbo.
O rum, já bom na sua adolescência, tornara-se maravilhoso ao envelhecer.
Para Paddy, habituado aos "venenos" vendidos nas bodegas das costas de
Barbaria e de S. Francisco, ou nas tavernas das docas, aquela bebida era um
néctar.
Sua alegria comunicativa irradiou sobre as crianças, contentes de o verem
de tão bom humor.
Habitualmente, o seu amigo cochilava e não queria senão uma
tranqüilidade completa. Mas agora ele lhes contava histórias do mar e cantava
velhas canções ritmadas pela manobra:
Vim de Hong Kong E de Peiping
E do Cantão. Ai de vocês, Sou um chinês, Não sou eu não!
Vim de Lisboa, Andei à toa Por toda parte, Sou tubarão, Peixe que voa,
Boto, espadarte,
E é só no tapa, Na bofetada, No cachação, Que não escapa Nem o
cachimbo Do capitão!
Lá do alto das árvores os pássaros espiavam com seus olhos brilhantes
aqueles alegres convivas, que pareciam gente em piquenique. Os coqueiros
devolviam a canção e os ventos carregavam-na para além da laguna, até onde as
gaivotas dançavam a farândola sobre as vagas marulhosas.
Naquela tarde, Mestre Button, inclinado à jovial idade, e não desejando
que as crianças o vissem sob a influência do álcool, rolou o tonel através do
bosque até uma pequena clareira à beira d’água.
Depois que Emelina e Dick adormeceram, ele lá voltou com alguns cocos
e uma concha. Geralmente a embriaguez o tornava músico. Emelina, acordada
durante a noite, ouviu sua voz, que o vento espalhava no bosque enluarado:
Seis ou sete marinheiros Beberam dias inteiros Em todos os taverneiros E
andam armando salseiros Pelas ruas aos berreiros, Seis ou sete marinheiros.
Canta, canta, rapaziada, Canta, canta, horas a fio, Que Babilônia caiu E
ficou livre a negradal
A aurora encontrou o cantor deitado ao lado do barril. Não sentia peso
nem indisposição alguma, mas deixou os cuidados da cozinha a Dick. Estendido
à sombra das palmeiras, a cabeça sobre um travesseiro feito com um velho
casaco enrolado, a virar seus polegares e a fumar seu cachimbo, ele declamava,
metade para seus companheiros, metade para si mesmo, discursos sobre os bons
tempos de outrora.
Durante uma semana, ele deu assim saraus musicais a seu bel-prazer,
depois começou a perder o apetite e o sono, e, uma manhã Dick encontrou-o
sentado na areia, com um ar muito esquisito. E não era para menos, porque,
desde a aurora, que ele vinha tendo visões.
- Que há, Paddy - perguntou o menino, que chegava a correr, seguido de
Emelina.
Mestre Button fixava um ponto na areia a seu lado, e sua mão direita
erguia-se como a de uma pessoa que tenta apanhar uma mosca. De súbito, ele fez
como se tivesse pegado qualquer coisa e abriu a mão para ver sua presa.
- Que é, Paddy?
- O Cluricauno! - disse Mestre Button. - Ele estava todo vestido de verde.
Ora, meninos! Mas eu estava brincando, apenas.
O mal de que ele sofria oferece a estranha particularidade de mostrar ratos,
serpentes e outras aluei nações, fazendo ao mesmo tempo o enfermo
compreender quase imediatamente que é vítima de uma ilusão.
As crianças romperam às gargalhadas e Mestre Button fez o mesmo, com
uma expressão atoleimada.
- Sem dúvida que era mesmo um brinquedo que eu estava fazendo para
vocês. Não havia Cluricauno algum, é quando eu bebo que me dá na veneta fazer
desses brinquedos. Meu Deus! Olhem ali aqueles ratos vermelhos que saem da
areia!
Ele arrastou-se de joelhos até os coqueiros, sacudindo a cabeça com um ar
de pavor. Ter-se-ia levantado para fugir, mas não se animava a pôr-se de pé.
As crianças faziam roda em torno dele, batendo palmas enquanto ele se
arrastava por terra.
- Os ratos, Paddy, os ratos! - gritava Dick.
- Eles estão agora diante de mim! - exclamou o visionário, tentando agarrar
pela cauda um daqueles fantásticos roedores. - Anda, espanta os animais! Ah! já
se foram... Mas que imbecil eu sou!
- Continua, Paddy - pediu Dick - não pares, há outros ratos que correm
atrás de ti.
- Oh! cala-te, por favor - suspirou Mestre Button, sentando-se na areia e
enxugando a fronte. - Eles agora me deixaram em paz.
As crianças ficaram a seu lado, muito desapontadas com o fim do
espetáculo; a comédia bem representada agrada às crianças como à gente grande.
Dick e Emelina ficaram, pois, esperando que o ator fosse dominado por
um outro acesso, e sua espera não foi longa.
Desta vez, aos olhos de Mestre Button, foi uma espécie de cavalo
escorchado que saiu da laguna e subiu para a praia, mas Paddy não se arrastou
mais; ele ergueu-se e saiu correndo.
- É um cavalo que está atrás de mim, é um cavalo que está atrás de mim!
Dick, Dick, bate-lhe no focinho! Dick! Dick! Espanta-o!
- Hurra! Hurra! - gritou Dick, perseguindo o alucinado, que galopava em
círculo, com a face vermelha voltada sobre o ombro esquerdo.
- Continua, Paddy, continua, Paddy!
- Salva-me do animal! - suplicava Mestre Button. - Santa Maria, Mãe de
Deus, ele vai me dar um coice! Ele está bem atrás de mim! Emelina! Emelina!
Separa-nos!
Ele deu um passo em falso e caiu sobre a areia. o infatigável Dick batia-o
com uma varinha para fazê-lo continuar.
- Eu me sinto melhor agora, mas estou quase morto - disse Mestre Button,
sentando-se. - Palavra! Se eu for ainda perseguido por coisas como essas, posso
garantir que será o meu fim. Dick, dá-me o braço.
Ele se apoiou ao braço de Dick e dirigiu-se para o bosque. Lá, lançou-se
por terra, dizendo às crianças que o deixassem tranqüilo. Eles compreenderam
que o brinquedo tinha terminado e abandonaram o velho marinheiro. Então
Paddy dormiu durante seis horas consecutivas. Era o primeiro sono verdadeiro
que, desde há muito, ele conseguia dormir. Quando despertou, estava curado,
mas ainda trêmulo das pernas.