Paixonite de 19 de junho

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Eu te vejo. Estamos próximos, mas não como eu gostaria. Neste vagão de trem um pouco cheio, com pessoas me acotovelando, eu te vejo.

Você entrou há pouco tempo, na mesma estação que eu, e de imediato nossos olhares se cruzaram, ainda que por menos de dois segundos, mas foi o suficiente para despertar meu interesse. Agora você olha ao redor, para se certificar de que ninguém mais vai entrar, assim você pode ficar encostado na porta, que só voltará a se abrir muito tempo depois. O sinal de fechamento das portas soa, elas se fecham e então o trem começa a se mover.


Você está quase na minha frente, próximo da porta, mas há duas pessoas entre nós. Do meu lado está um jovem branco, com cabelo castanho claro cortado como se fosse uma tigela, vestindo uma blusa xadrez vermelha e preta. Mas ele não me desperta interesse algum. Minha atenção é toda para você.


Não posso ver suas pernas, mas seu tronco forte me chama a atenção. A barba cerrada, escura, acentua seu rosto quadrado, suas feições graves, os olhos pretos e um tanto pequenos. O cavanhaque emoldura a boca reta, de lábios grossos e amarronzados — que me atraem de imediato. O boné cinza de aba reta encobre seu cabelo cortado à máquina um.

Tento disfarçar, mas não consigo. Olho uma, duas, três vezes para você. Seu rosto me é familiar, mas não sei dizer de onde te conheço. Mas este seguramente não é o motivo para que eu te olhe tanto.


Nossos olhares se cruzam de novo, enquanto você coça sua barba, distraído com alguma coisa — talvez. Novamente este momento dura apenas um instante, já que não consigo sustentá-lo e, por reflexo, desvio o olhar, fingindo ler o nome das estações, como se já não conhecesse de cor aquele trajeto. Passados alguns segundos te olho mais uma vez, e, novamente, nossos olhares se cruzam. Sinto uma descarga de adrenalina em minhas veias, misturada à vergonha de ser pego no flagra, como se fosse um crime admirar o que me é belo. Por reflexo desvio o olhar, baixando-o para meu braço. Amaldiçôo-me por isso, já que além de involuntariamente testar sua paciência, estou frustrado comigo mesmo por não conseguir flertar direito.Falta-me um pouco mais de maturidade — logo eu que me considerava, e sempre me orgulhei de parecer, tão maduro e sábio.

Novamente, no instante seguinte, eu te olho, com uma estranha esperança de que você corresponda mais uma vez o olhar, mas desta feita não tenho tal sorte. Seus olhos estão fixos em algo a sua frente, certamente algo que não posso ver, pois estou de costas para ela, mas não ouso me virar para ver, seria "dar (muita) bandeira". Fico um tanto irritado. Queria você olhando para mim, apenas para mim, toda a sua atenção voltada para mim. Mas isso passa rapidamente ao perceber que posso aproveitar esse momento para analisar suas feições com mais calma.


Seu jeito grave, — imagino — até mesmo carrancudo, destacado pela barba cerrada, me atrai. Gosto de homem com cara e jeito "de homem". Mas são, principalmente, seus lábios carnudos que me atraem, como se fossem ímãs, e eu, bem, um simples pedaço de metal.

Involuntariamente me imagino te beijando, mordendo seus lábios de leve, te atiçando.Sua língua raspando na minha, e no instante seguinte elas estão se tocando, o beijo ficando mais selvagem, numa tentativa velada de definir quem tem controle sobre quem. Naturalmente, sabemos a resposta. É óbvio, não é?


Num momento, olho para cima, buscando ver sua mão, esperando que você não tenha uma aliança em algum dos dedos anelares. Não consigo verde imediato, mas não me recordo de ter visto nenhum aro em seus dedos. Logo, você não é casado ou noivo, ou mantém um compromisso com alguém. Mas, agora que vejo melhor, não há nem mesmo uma corrente, ou fitinha presa ao pulso, um pequeno alargador na orelha, nem nada. Não gosta de acessórios? Que pena. Acho que você ficaria tão bonito com eles... Realçaria muito sua masculinidade... Se bem que você não precisa de nada disso, já é naturalmente sensual. É por isso que você não usa acessórios? Você já sabe o que é, o  que acham de você, e valoriza isso naturalmente. Se for, parabéns, continue assim.

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