Relatório: O profundo silêncio da mata.

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A diligência trepidava com violência enquanto o condutor procurava os pontos menos esburacados da velha estrada para passar. Havia chovido muito aquela semana, portanto, seu serviço não era dos mais simples. Mesmo sabendo disso, aquele balanço me era profundamente aflitivo.

A condução não era uma carruagem. Nem tinha teto que pudesse nos proteger do terrível sol que castigava ao meio dia, nesta terra onde, irritantemente, sempre parece ser verão. Ah, como tenho saudade das outras estações do ano.

Por sorte, haviam me alertado desta particularidade local a tempo de eu providenciar um chapéu de abas largas. Nunca fui adepto da chapelaria. Contudo, aquele se tornara acessório indispensável, se eu não quisesse ter o couro arrancado do meu rosto por uma queimadura de sol.

Brasil... Creio que o nome não poderia ter caído melhor. Parece mesmo que estou imerso em um braseiro.

Nossa carona também não chegava a ser uma charrete. Aquilo não poderia, nunca, ter sido concebido com intuito de fomentar transporte humano. Era sim, uma carroça para mercadorias, com as laterais altas. Fora adaptada toscamente com bancos de madeira de refugo que rangiam constantemente, como se fossem torturadas pelo próprio demônio.

Meu parceiro de viagem também não parecia se agradar do passeio. Seu nome era João e era um sujeito de costumes triviais. Vestia surrada camisa de botão e calças das mais simples. As sandálias franciscanas seguiam a mesma escala. Enfim, embora a simplicidade fosse sua principal marca, era possível notar, no desconforto estampado em seu rosto, que mesmo ele já havia desfrutado de melhores estilos de viagem.

O boleeiro era outro que estava irritadiço. Fazia questão de demonstrar isso. Praguejava, eloquentemente e em maior tom que conseguisse, a cada vez que uma das rodas se chocava contra o fundo de um buraco. Notável a quantidade de palavrões que aquele homem conhecia. Em certo momento, em meio ao tédio, peguei-me lutando contra a vontade de apanhar meu caderno de anotações para fazer constar alguns que eu não conhecia.

Assim, dos quatro viajores, o único que não parecia incomodado era o cão que João trazia consigo. Jogado ao fundo da diligência, o vira-latas amarelado se mostrava perdido em pensamentos. Se é que ele os tinha. Enquanto isso, seu olhar vagava pelos contornos e redemoinhos que a poeira formava na porção de estrada que deixávamos para trás. Jamais havia notado, em criatura não provida de consciência, um estado de imersão tão profundo.

Acho que isso coaduna com minha teoria de que, quando se tem uma mente vazia, qualquer coisa se torna terapia.

Apesar de todas as intempéries e contratempos, não sei realmente por que eu reclamava tanto. Afinal, eu já devia estar acostumado com este tipo de tratamento. O "status" do serviço que desenvolvo não é daqueles que se pode fazer ostentação.

Aliás, seria impossível executá-lo, se eu chegasse às localidades chamando a atenção com uma carruagem extravagante ou ficasse comparecendo a bailes esnobes da alta nobreza. Meu trabalho exige discrição e tenho ciência de que sou bom nessa seara.

Assim, acho que minha irascibilidade tinha mais a ver com o cansaço. Sim, a fadiga era o principal problema. Eu estava cansado. Cansado daquela viagem. Cansado do tipo de risco que meu trabalho envolve. Estava cansado de receber congratulações, somente a portas fechadas, por um serviço prestado. Cansado de ser o último recurso e, ainda assim, ser usado a cada espirro que a nobreza dava.

Contudo, isso não era desculpa para um trabalho mal feito. Inclusive, se a realeza apenas intuísse que eu prestasse um serviço deficitário, bem provável seria que minha cabeça se pusesse a prêmio para algum mercenário. Informalmente, claro. Principalmente quando el-Rei dá tanta atenção a cada bazófia que aquele Marquês de Pombal diz.

Relatório: O profundo silêncio da mata.Where stories live. Discover now