Arraial de São Nicolau.

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Era início da madrugada. Um manto rigoroso de neblina repousava baixinho sobre o terreno do Arraial de São Nicolau, impedindo que nós sequer enxergássemos o chão.

Poderíamos ter esperado a noite passar e adentrar a localidade pela manhã. Contudo, quando sucipiá disse que "faltava pouco", continuamos avançando pela escuridão a fim de alcançar logo o nosso destino. Acho que a noção de distância daquele índio é completamente diferente da minha.

O lugarejo não tinha mais que treze ou catorze choupanas carcomidas. Aparentemente, não haviam sido manutenidas desde que os jesuítas foram expulsos das colônias pelo rei, cinco ou seis anos antes. Foi precisamente nesta época que elas foram abandonadas.

Um tanto mais afastada das residências, jazia o monastério de São Nicolau. Este sim, uma estrutura de aspecto mais complexo. Com muros grossos de granito sólido, parecia mais um castelo ou fortaleza que um prédio religioso. Mas, não fomos direto a ele. Resolvemos primeiro, revistar as casas.

O índio se recusou a adentrar o vilarejo. Supersticioso como ele só, acreditava que o deus cristão amaldiçoara o lugar e que algo terrível aconteceria com os não-cristãos que ali adentrassem. Era o que ele cria que havia ocorrido com a tribo dos Goitacazes que ali se instalara e que desaparecera subitamente.

Na primeira porta em que Cavalcante meteu o pé, esta, apodrecida, se desfez como se feita de papel molhado. O pobre rapaz adentrou o recinto catando cavacos e chocou sua alva face contra uma parede de argila. O soldado tinha ímpeto invejável, premissa de sua juventude. Contudo, um pouco da sensatez e cautela da velhice não lhe fariam mal.

O odor que exalou de dentro do casebre não poderia ser definido por algo diferente de abominável. Tivemos de abrir as janelas e esperar algum tempo antes de sequer poder entrar para checar o que poderia ter um fedor tão pestilento.

Após entrarmos, não tardou até que encontrássemos um corpo se desfazendo, caído em um dos quartos. Também não foi preciso análise mais detalhada para que constatássemos que se tratava de uma mulher indígena. Ainda era possível notar os traços e contornos femininos. O cabelo da raça é muito peculiar. Além é claro, do fato dela estar nua. Nem me dignei a abrir o malão com meus materiais de pesquisa. Já não havia vestígios do que poderia tê-la matado. No entanto, algumas pústulas esverdeadas me chamaram a atenção.

Averiguamos, então, outras casas. Corpos em situação similar ao primeiro não paravam de aparecer. Tive de dar o braço a torcer e fazer uma ou outra autópsia.

Outro fato me chamou a atenção. Não era possível estimar a quanto tempo àqueles cadáveres haviam feito à passagem. Isso me intrigou mais do que as pústulas. Não era uma matéria que eu tivesse encontrado dificuldade em outras oportunidades.

O que acontecia é que, em um mesmo corpo, determinados órgãos pareciam estar mortos há mais tempo que outros. Olhos, fígado, aparelho reprodutivo e os que faziam parte do baixo sistema nervoso, demonstravam um avantajado estado de decomposição. Datavam suas mortes de semanas. Já os músculos e parte inicial do aparelho digestivo pareciam ter apenas alguns dias que tinham parado de funcionar.

Teorizei que talvez a putrefação cadavérica dos índios ocorresse de forma distinta de outras etnias. Ou, quem sabe, tal evento tivesse causa ambiental. Algo ligado às condições específicas da mata atlântica. Isso poderia explicar também as pústulas? Outra hipótese seria uma doença tropical ainda desconhecida pelos estudiosos.

Eram muitas suposições e nenhuma conclusão. No fim das contas, nada importava. Minhas investigações ali não tinham caráter biológico.

Então me surgiu outra dúvida. Pareceram-me estranhos todos aqueles corpos abandonados. Estudei diversas culturas antigas e não me lembrava de uma sequer que não tivessem rituais específicos para lidar com seus mortos.

Relatório: O profundo silêncio da mata.Where stories live. Discover now